Bob Cerea, o mago da Lombardia
Em passagem pelo Brasil, Roberto Cerea, chef do célebre restaurante italiano Da Vittorio, confirma a lenda: é (muito) mais difícil manter as três estrelas Michelin que conquistá-las
Roberto Cerea conta, rindo, que desde pequeno gostava de beliscar o que estava sendo preparado na cozinha do restau-rante de seu pai. “Um dia ele me olhou e disse: esse já nasceu guloso”. Por conta disso, ele explica, foi colocado ali mesmo, na cozinha. Os irmãos ajudavam em outras funções. “Papai era como um treinador de futebol. Sabia onde nos escalar.” Porém, o primeiro impacto o assustou. “Comecei com traba-lhos muito pesados, horas a fio. Mas o lado bom de estar ali, onde tudo era preparado, é que perdi o medo de errar.” O resto, bem, é história. Literalmente. Hoje o chef restaurateur comanda o Da Vittorio, casa laureada com a galhardia máxi-ma de três estrelas no Guia Michelin, o suprassumo da gas-tronomia mundial. Isso na minúscula Brusaporto, cidadezinha de pouco mais de cinco mil habitantes, na Lombardia. Em pas-sagem recente pelo Brasil, Cerea celebra o bom momento da culinária de seu país (“somos a brigada italiana”) e comenta o desafio hercúleo que é “segurar” as estrelas conquistadas.
Qual a vera tradição da sua cozinha? Lombarda?
O restaurante nasceu em 1966, pode-se dizer que meu pai e meu irmão levaram o peixe para Bergamo, a 300 quilômetros do mar. Meu pai tinha ido a Veneza, onde temos parentes, e lá teve os primeiros contatos com pratos à base de pescados. Os dois fizeram uma aposta, porque eram teimosos, e conseguiram que desse certo. Naturalmente, no nosso restaurante você vai encontrar pratos típicos lombardos, a polenta, o risoto, nossa fa-mosa “orelha de elefante” [cotoletta à milanesa], mas 70 ou até 80 por cento do menu é baseado em pescados.
Hoje há basicamente duas escolas na cozinha italiana, uma muito moderna, e a outra, muito tradicional, que não abre mão de suas raízes. Concorda?
Com toda certeza. É um pouco o que nosso restaurante repre-senta: o país na cozinha, com uma face muito tradicional, e a outra muito moderna. Hoje, das escolas de gastronomia saem muitos jovens que usam sifões, gelatinas, técnicas modernas, mas não conseguem nem fazer o básico. Isso é justo? Claro que não. Então, temos que louvar as técnicas antigas, mas fazê-las serem acompanhadas das novas. As antigas têm sempre que ser a base. Já as novas são as que dão leveza aos pratos.
Você é um cozinheiro genuinamente italiano, mas que sensibiliza muitos os franceses. Isso é um reconhecimento, não?
É preciso ressaltar que nos últimos tempos a cozinha italiana vive uma fase belíssima, podemos dizer que está entre as três mais apreciadas do mundo. Você percebe isso pelo número incrível de restaurantes italianos fake que existem em todo lugar. Digo fake, porque eles alegam usar produtos que dizem ser ita-lianos, mas isso não é verdade. Vejo colegas estre-lados [no Guia Michelin] que são chamados no ex-terior para abrir esses restaurantes. No começo dos anos 90, a França era como um farol para a cozinha italiana. Foi lá que comecei, bem devagar, minhas principais experiências na cozinha. Então, sim, é um reconhecimento .
Como conservar as três estrelas no Guia Michelin e ainda assim ser genuinamente italiano?
Conseguir as três estrelas não é nada fácil, mas para mantê-las é muito, mas muito mais complicado. É um enorme desafio cotidiano. É preciso haver uma sintonia perfeita entre a cozinha, o serviço, e todo o restante da operação. Há vários detalhes mínimos que fazem a dife-rença, e que requerem muita atenção, concentração e até muito stress, mas que no final levam aos resultados.
Costuma perder horas de sono por conta disso?
Por sorte, somos uma família. Então os problemas não vêm só nas minhas costas, tem meu pai e meus irmãos para dividir. E nesse caso, como diz o ditado, a união faz a força.
Que outros chefs poderia citar que são de sua admiração?
Para ficar mais fácil, eu poderia falar dos dez restaurantes mais estrelados que existem na Itália. Há 15 ou 20 anos, como meu pai comenta, existia um pouco de rivalidade entre todas essas casas. Hoje, acho que somos mais inteli-gentes, porque são dez restaurantes três estrelas, porém são casas que cozinham diferentes tipos de comida. Cada um deles tem o seu espaço. Hoje o cliente vem aqui, ama-nhã no Massimo Bottura (Osteria Francescana), daqui a três dias vai comer no Dal Pescatore. Somos uma esqua-dra, a esquadra italiana. Esse ambiente criou uma clien-tela que gosta de circular por essas casas. E nós, chefs, nos encontramos em fóruns, eventos, manifestações… Existe uma troca de ideias, uma troca cultural. Eu vejo o que eles fazem, eles veem o que eu faço. E isso faz cres-cer a cultura e o conhecimento da cozinha italiana.
Além das influências familiares, quais são suas outras?
Quando saí das escolas de gastronomia, comecei a dar uma volta pela Europa para fazer estágios nos gran-des restaurantes. Especialmente na França. Foi ali que comecei minha experiência em grandes cozinhas. De-pois, fui para o mundo afora.
Talento sem fronteiras
O que Suíça e Xangai, na China, podem ter em comum com a lombarda Brusaporto? Bem, muito. Isso porque, além de expandir (com muito sucesso, diga-se) seus negócios para hotelaria, catering, confeitaria e até vinícola, o clã Cerea, tendo o filho pródigo Roberto à frente, também abriu filiais do Da Vittorio nessas paragens. A unidade no Carlton Hotel, na suíça Saint Moritz, obteve sua primeira estrela Michelin em 2018. Já a de Xangai acaba de conquistar a sua, agora em 2019. Trata-se de uma façanha e tanto: um restaurante ter suas três unidades reconhecidas pelo guia de maior prestígio no universo da gastronomia.
O caminho das estrelas
A primeira estrela Michelin conquistada pelo Da Vittorio aconteceu em 1978, quando Roberto Cerea tinha apenas dois anos de idade. Já em 1996, ao lado dos irmãos e da mãe, Bruna, o chef teve grande participação na chegada da segunda estrela. Por fim, em 2010, já sob sua batuta, a casa consagrou-se no seleto panteão dos restaurantes detentores das almejadas três estrelas do Guia Michelin.
O Da gênio criativo
O Da Vittorio reserva uma liturgia gastronômica única. Que começa no suntuoso american bar, onde o Gin Tonic Marinato é um dos coquetéis assinatura da casa. Proclamando o conceito “Tradição lombarda e gênio criativo”, o menu oferece starters como a combinação de oito diferentes tipos de trufas frescas. Entre os principais, todo o talento do chef Roberto Cerea prevalece em assinaturas como o Peixe-escorpião cru e cozido, a Mora da Antártida ao creme de wasabi ou o Cervo em crosta de sal e pimenta-preta. A fina pâtisserie da casa, paixão de Enrico, o irmão mais velho do chef, propicia o gran finale para um cerimonial perfeito.
Por Carlos Eduardo Oliveira
Fotos Daniel Cancini