Salvaguarda 2012: uma safra muito ruim
O dono da Mistral, hoje a maior importadora de vinhos do Brasil, é um dos mais ferrenhos oponentes da salvaguarda proposta pelos produtores gaúchos contra os importados. Aqui, ele explica por que essa reivindicação pode ser um tiro no pé para quem trabalha com vinho no Brasil
Por Celso Arnaldo Araujo Fotos Mauro Holanda
O Brasil continua bebendo pouco vinho: duas garrafas por pessoa/ano, contra 40 dos franceses e italianos. Mas somos um mercado bastante sofisticado, não?
Sim, é um mercado bem definido e preparado para consumir muito mais vinho – se houvesse um preço mais acessível
É tudo uma questão de preço?
Sem dúvida. O poder aquisitivo do brasileiro é muito menor que o do americano, por exemplo, e os vinhos chegam aqui três vezes mais caros que lá. Esse sobrepreço é criado pelos impostos e pela burocracia.
Apesar da grita, os vinhos nacionais já não têm por 80% do mercado brasileiro?
Sim, porque 80% do consumo no Brasil é vinho de garrafão, exclusivamente nacional. Os 20% que sobram são o que mexe o mercado – e aí as proporções entre vinho brasileiro e importado podem se alternar. As importadoras fizeram um trabalho maravilhoso de divulgação, colocando os produtores em contato com o público. Mas o consumo não sobe por causa do preço. O que ocorre é uma migração interna entre as várias categorias de vinho, sempre dentro dos mesmos números. O mais frustrante é que, enquanto o brasileiro bebe duas garrafas de vinho por ano, toma 17 de cachaça e 25 de cerveja. Diante desses números, o consumo de vinho no Brasil ainda é ridículo.
Para os importadores, a palavra “salvaguarda” – reivindicada pelos produtores gaúchos – virou um palavrão. Por quê?
Porque essa é uma absurda e inacreditável falta de visão. Eles acreditam que, se não puder tomar uma garrafa de Borgonha, você vai automaticamente migrar para um vinho nacional. Mas quem criou o mercado foi o pequeno produtor de vinho importado – o château, o castelo, o monge, o papa, o príncipe. Tudo isso construiu a magia em torno do vinho. Essa visão distorcida, que enxerga um inimigo no vinho importado, tem vindo à tona, ciclicamente, há 20 anos, de forma mais ou menos acentuada, dependendo das lideranças do setor. Hoje, esse movimento está muito forte. Não reivindicam apenas aumento do imposto de importação mas também mais burocracia – que encarece o vinho tanto quanto o imposto.
Burocracia para trazer o vinho?
Sim e ela afeta só o produtor pequeno, porque, se você traz um milhão de garrafas, o custo da burocracia se dilui. O vinho leva uns dois meses para chegar ao Brasil depois da compra, mais uns 45 dias dentro do contêiner, em Santos – contra 24 horas nos Estados Unidos. Para quem usa contêineres refrigerados, como a Mistral, isso custa uma fortuna. Se forem contêineres comuns, há um risco enorme de o vinho estragar ou, no mínimo, perder qualidade. A burocracia não afeta em nada o produtor de alto volume e baixo preço. E é uma bomba-relógio para o pequeno produtor de baixo volume e alta qualidade.
Mais por que a palavra salvaguarda assusta mais do que aumento de impostos?
Porque ela representaria o fim de tudo de bom que existe no vinho no Brasil. Os pequenos produtores que eu trago para o encontro internacional da Mistral vêm aqui para vender mais vinho. Se não puderem vender mais, não vêm mais. Eu anuncio nas revistas pra quê? Pra vender mais vinho. Se eu não puder vender, não anuncio mais. Os sommeliers existem por causa da variedade de vinhos. Se for para oferecer meia dúzia de vinhos nacionais, acabarão os sommeliers. Perderíamos tudo o que conquistamos.
Mas em que consistiria essa salvaguarda, se fosse instituída?
Cotas de importação baseadas na média do que foi trazido em 2009, 2010 e 2011, menos um redutor x. Como a importação cresceu de um ano para a outro, seria uma redução brutal. A impossibilidade de crescer inibiria a divulgação do vinho no Brasil. Outro problema: o que você vai cortar? Sem dúvida, os vinhos de menor giro, de pequenos produtores, vinhos de butique. Sem eles, a cultura do vinho no Brasil ficaria muito prejudicada. É uma volta a 25 anos atrás – isto é, aos tempos da garrafa azul, do Corvo de Salaparuta, um ou dois Casal Garcia e meia dúzia de nacionais de multinacionais, e você não via nos restaurantes uma mesa bebendo vinho.
Não havia nem sommelier…
Aliás, sempre a conto a história de um jantar, em setembro de 1989, num restaurante recém-aberto na Avenida Cidade Jardim, o Tasting, que se dizia especializado em vinhos. A carta de vinhos era de fato muito boa para a época. Achei um único erro – um vinho anunciado com a uva errada. Chamei o maître e perguntei: vocês têm sommelier? Ele respondeu: “Não, senhor. Mas, se o senhor quiser, eu peço para o chef preparar…”. Veja como mudou o mercado. Corremos o risco de voltar para trás. O grande furo da ideia é que, sem poder beber um Barolo, você automaticamente pediria um vinho da serra gaúcha. Isso não é verdade. Vinho não é commoditie, é história, é cultura.
Em que pé está a questão?
Está em estudos no Ministério da Indústria e Comércio e espera-se uma decisão até setembro. Eu, pessoalmente, entendo que, do ponto de vista técnico, não há como a salvaguarda ser concedida. O risco é passarem por cima do parecer técnico e tomarem uma decisão política, que seria desastrosa, inclusive para a imagem do vinho nacional. Toda vez que não achar seu favorito nos supermercados ou nas cartas de vinhos, você saberá quem é o culpado.
Já há chefs importantes boicotando vinhos nacionais em seus restaurantes…
Sim, e de forma espontânea, o Alex Atala, a Roberta Sudbrack, por exemplo, tomaram essa decisão.
Fora isso, a Mistral vai bem?
Vai muito bem: a maior surpresa de minha vida foi a Mistral ter se tornado a maior importadora do Brasil em faturamento, mesmo sem vender para supermercados. Nunca tivemos planos de ser a maior – mas a melhor. Eu digo que a Mistral tem uma história monótona, sem sustos – em 20 anos, foi crescendo, crescendo, sem aventuras.
Você mesmo faz a seleção de todos os produtos do catálogo da Mistral?
Sim, mas no começo era muito mais difícil. Eu tinha pouco a oferecer. Hoje, os produtores nos procuram. A Mistral tem um grande prestígio entre os produtores: paga religiosamente em dia e fala a verdade. Essa relação de confiança é fundamental. Aliás, abri a Vinci porque todo produtor queria trabalhar comigo e eu não tinha como acomodar a todos na Mistral. Um exemplo clássico é o dos espanhóis Vega Sicilia e Mauro – este um produtor espetacular, premiadíssimo. Mas quando você tem um Vega Sicilia… O Mauro está na Vinci.
A Vinci é sua própria concorrente?
O objetivo da Vinci é ser a melhor importadora do Brasil. As duas competem até mais do que eu gostaria.
Todo empresário de rock tem o sonho de consumo de trazer o astro que nunca veio ao Brasil. No seu caso…
Bem, eu não pego produtor que esteja com outro importador – quando este nos respeita. De resto, meus velhos sonhos foram realizados: Vega Sicilia, Gaja, etc.
Qual é o perfi l da Mistral em termos de Novo ou Velho Mundo?
A Mistral acompanha as estatísticas do mercado, com uma diferença: o país que mais exporta para o Brasil é o Chile, o segundo a Argentina. Aqui, isso se inverte, porque temos o Catena, que é o maior nome da vinicultura argentina – sem que haja um segundo nome por perto. No resto, acompanhamos: Itália, França, Espanha e Portugal. Mas somos fortes também na África do Sul, Nova Zelândia.
Você bebe de tudo?
O que eu mais gosto no vinho é a variedade. Se você me perguntar se tenho um vinho preferido, não tenho. Se você insistir muito, eu vou dizer que, entre os brancos, os melhores são os borgonhas. Fora isso, gosto de variar de continente, de país, de estilo, de uvas
Alguma nova estrela no mundo dos vinhos?
Na Itália, os vinhos da região do vulcão Etna são uma surpresa, pois lembram muitíssimo os borgonhas. Na Espanha, volta e meia aparece uma novidade, como os vinhos de Bierza e, um pouco mais para trás, os do Priorato.
Como a crise europeia afeta os produtores?
A crise está muito feia, mas há dois tipos de produtores na Europa: os que exportam pesado e os que vendem muito nos países de origem. Estes é que estão muito mal. O mercado despencou. O restaurante não compra e, se compra, não paga. Os gregos particularmente estão sofrendo muito, assim como portugueses e espanhóis. Os produtores que vivem de exportação estão um pouco melhor.
O Brasil tem entusiastas que estudam e compram muito. Mas nas degustações o pessoal não está excedendo nas bobagens?
Acho que esse é outro grande inimigo do vinho no Brasil. As pessoas que estão se iniciando se assustam com o que ouvem nas degustações, com descrições de dezenas de aromas e gostos. Quem não consegue sentir nada daquilo acha que beber vinho é muito complicado e está acima de sua capacidade sensorial. Já ouvi gente dizendo que tinha sentido num vinho aroma de cassis pisado. Certamente nunca passou perto de um cassis pisado na vida.
A empolgação pelo vinho não faz o mercado brasileiro ser imune à crise?
Eu diria pelo vinho e pela gastronomia. Nossos restaurantes melhoraram muito e estão cheios, com muita gente bebendo vinho. Pena que beber vinho no Brasil seja ainda um hábito de ocasião – como estar num restaurante. O que falta é o consumo informal, em casa.
A Lei Seca afetou o consumo de vinhos?
Sem dúvida, inibe, mais no Rio – que é menor e tem muita blitz. Eu, pessoalmente, vou às degustações de táxi. E às vezes o táxi custa mais do que o vinho… A pé você não vai para não ser assaltado. O metrô fecha à meia-noite. Não há opções. E a Lei Seca brasileira, ao estabelecer tolerância zero, cometeu um erro estratégico. Nos Estados Unidos, há um limite de 0,9 mg/l, para ser respeitado – ninguém fica bêbado com 0,9 de álcool no sangue e o sujeito aprende a beber dentro dessa margem. Aqui, sendo zero, não há diferença entre não beber nada e beber tudo. Daí a violência de certos acidentes causados por pessoas totalmente embriagadas. Para esse motorista não haveria diferença em ser pego depois de tomar uma única taça de vinho ou tomar cinco garrafas de uísque – estaria fora da lei. Então, ele arrisca. É importante ressaltar que, para o setor de vinhos e de destilados, o bêbado não é um cliente que interessa, pois ele trabalha contra a imagem do produto. Aliás, não conheço nenhum bêbado de vinho…
Você é uma das poucas pessoas no Brasil que pode beber qualquer vinho, pois tem acesso a todos. Isso não cria um dilema?
Eu tenho uma casa de campo em Vinhedo – mera coincidência – onde passo os fins de semana. Minha mulher é uma grande cozinheira. Então eu pergunto a ela o que vai ter no no jantar e escolho o vinho. Isso reduz o dilema. Mas a verdade é que, pensando em comida, a escolha quase sempre recai em Velho Mundo. Para aperitivar, Novo Mundo. Mas, em geral, não tenho ansiedade. A única coisa que perdi quando deixei de ser consumidor comum para ser importador foi o prazer de comprar uma garrafa, trazer para casa, etc. Muita gente acha que importador vive viajando e bebendo muito – mas, de novo, a burocracia é brutal e desumana. Eu importo algumas outras coisas, como taças – e parece brincadeira de criança perto do vinho. Só o período em que um vinho fica parado no Porto de Santos encarece a garrafa em 30%.
Qual é seu vinho mais caro?
Importo umas 12 garrafas por ano do Château Petrus. Deve ser o mais caro. Mas não é a nossa praia – porque o preço desses vinhos de quatro, cinco mil dólares a garrafa já não têm uma relação direta com a qualidade, mas com a lei da oferta e procura. No caso dos Bordeaux, o preço tem a ver com a ascensão dos novos ricos. Por ter uma classificação bastante clara, com uma gradação de qualidade em categorias, e ter apenas um Château Lafite ou um Château Margaux, é muito simples escolher um Bordeaux. Por isso, é natural que o primeiro vinho que o novo rico compra é um Bordeaux. Isso ocorre muito com japoneses, russos e agora chineses – que desequilibraram completamente o mercado de Bordeaux. Eu mesmo parei de comprar os tops.
Seu paladar já está treinado para reconhecer para o resto da vida um grande vinho que você bebeu há 20 anos?
Há 20 anos, quando eu ainda era amador, cheguei a adivinhar vinhos em séries grandes. Por quê? Porque os vinhos eram muito diferentes uns dos outros. Hoje, com a “parkerização” (uniformização do mercado atribuída ao poder do crítico norte-americano Robert Parker, que dá suas melhores notas aos vinhos escuros e encorpados), os vinhos ficaram muito semelhantes, perdendo suas características regionais. Há alguns anos, escrevi um artigo na revista da Mistral sob o título “Parker´s sons disease”, a respeito dessa homogeneização. Percebi isso numa viagem que fiz com minha mulher. Da Espanha à Itália, tudo parecia ao gosto de Parker, escuro e encorpado. Nunca, em nenhum campo da atividade humana, um crítico teve tanto poder a partir de seu gosto pessoal. O dono de uma loja de Nova York me disse um dia que o maior problema da vida dele era o Parker. Explicou: “Os vinhos a que ele dá menos de 85 de nota eu não consigo vender; os que ele dá mais de 90 eu não consigo comprar…”. A verdade é que os vinhos evoluíram muito – mas à custa dessa uniformização. Agora, já há uma certa tendência à volta dos vinhos mais elegantes. Os dois estilos precisam conviver. Essa é a magia do vinho.
Leia essa e outras matérias na Go’Where Vinhos n° 5.