A Bossa de Ruy Castro
A expressão “biografia definitiva” geralmente é um exagero – ou uma pretensão. Vidas raramente se esgotam num único volume. Mas no caso do jornalista Ruy Castro, o termo costuma ser acertadíssimo – as vidas de Carmen Miranda (Carmen: uma biografia), Mané Garrincha (Estrela solitária) e Nelson Rodrigues (Anjo pornográfico) terminam efetivamente no ponto final dos livros sobre esses três ícones da brasilidade escritos por ele. Mas foi com Chega de saudade que Ruy se superou: o livro traz a única biografia possível de um personagem “imbiografável” (João Gilberto), através da crônica do gênero que João iniciou: a bossa nova. Agora, 25 anos depois, Ruy esmiúça outro ritmo fundamental da música brasileira: o samba-canção. A noite de meu bem, título de um dos hinos do gênero, composto e cantado por Dolores Duran, é a biografia – claro que definitiva – de uma era em que grã-finos de smoking curtiam canções hoje célebres sobre amores doídos, em boates chiques e esfumaçadas de Copacabana, entre os anos de 1946 e 1965. O livro é um luxo e já um best seller. Ruy falou a GoWhere.
Por: Celso Arnaldo Araujo
“Todos os grã-finos, por exemplo, moravam no Rio. As outras cidades tinham, no máximo, os ricos – e não se pode confundir os grã-finos com os ricos. O grã-fino é grã-fino até quando fica pobre – veja o caso do Jorginho Guinle”
GW: Se um neófito no gênero e na história da música lhe pedir uma definição sucinta e definitiva do samba-canção, como você o explicaria?
RC: É uma canção em ritmo de samba, claro. Ou um samba em forma de canção. O importante é definir uma canção – um tema de frases longas, lentas e licorosas, geralmente romântico e convidando à intimidade dos rostos e corpos colados. E o ritmo é o de um samba suave, tocado apenas com as escovinhas da bateria, sem pressa. A letra, naturalmente, falará de um amor perdido ou reencontrado. E será estupidamente bem escrita.
GW: O conceito de samba-canção é fartamente documentado no livro – mas a expressão, em si, não. O termo tem um criador oficial? Onde ele aparece pela primeira vez?
RC: Quem inventa essas expressões? Quem chamou o jazz de jazz pela primeira vez? E a própria palavra samba, terá tido um criador? O mesmo quanto ao samba-canção. Quando ele apareceu no começo de 1929, no selo de um disco de 78 rpm, “Iaiá” – logo depois popularizado como “Ai, ioiô”, com Aracy Cortes –, não deve ter provocado grande estranhamento. Já havia os foxes-canção, as valsas-canção, os choros-canção. Só faltava mesmo os sambas-canção.
GW: Como em suas obras anteriores, “A noite de meu bem” traz uma extraordinária garimpagem de detalhes sobre a época e os cenários do samba-canção, como se você tivesse vivido todos aqueles acontecimentos em pessoa – o que, evidentemente, não ocorreu. Qual é a mágica? Quais foram suas principais fontes de pesquisa para se transportar àquela época?
RC: Tive a sorte de ainda encontrar várias pessoas que tinham sido contemporâneas daquele período, basicamente de 1946 a 1965. Não me incomodo de citá-las, porque todas constam de uma lista de agradecimentos no fi m do livro – entre muitas outras, Sergio Figueiredo, Lourdes Catão, André Jordan, Dulce Bressane, Germana de Lamare, Mariozinho de Oliveira, Victor Berbara, Doris Monteiro, Danuza Leão, Walter Fontoura. Conversar com elas foi fundamental para equilibrar a montanha de material de época que recolhi em jornais e revistas descobertos na hemeroteca da Biblioteca Nacional. E livros, dezenas de livros – memórias de políticos, boêmios, diplomatas. Qualquer pessoa que tivesse pelo menos 25 anos em 1950 era uma fonte em potencial. Ouvi cerca de 150 fontes, a uma média de três entrevistas por fonte – faça as contas. Eis porque, nesses quase três anos, de janeiro de 2013, quando tive a ideia, a novembro de 2015, quando o livro saiu, não fui à praia, nem a shows, nem jantei fora. Estava perdido em alguma boate de Copacabana nos anos 50…
GW: Como na bossa nova, o Rio é o habitat natural do samba-canção? Ou houve uma vertente paulista do gênero?
RC: Assim como aconteceu com as escolas de samba e acontece hoje com os blocos de Carnaval – todas as cidades agora têm os seus –, também as boates, depois de popularizadas pelo Rio, se tornaram um fenômeno nacional. Qualquer cidadezinha tinha a sua “boate”. Mas eram as do Rio que tinham o know-how, os grandes cantores e um tipo muito especial de boêmio. Todos os grã-finos, por exemplo, moravam no Rio. As outras cidades tinham, no máximo, os ricos – e não se pode confundir os grã-finos com os ricos. O grã-fino é grã-fino até quando fica pobre – veja o caso do Jorginho Guinle. Mas o rico precisará de muitas, muitas gerações para se tornar grã-fino.
GW: “Chega de saudade” e “A noite de meu bem” têm inúmeros personagens em comum. Quais são os pontos de contato entre a bossa nova e o samba-canção?
RC: Muitos grandes nomes da bossa nova, como Tom Jobim, Newton Mendonça, Sylvia Telles, Johnny Alf, o próprio João Gilberto, começaram pelo samba-canção. O que não se tinha ainda percebido, nem por mim, é que, mesmo durante a bossa nova, continuaram a fazer também samba-canção. Só que este já não era chamado por este nome. Aliás, não era chamado por nome nenhum. Mas era samba-canção.
GW: A bossa nova é a trilha sonora do calçadão de Copacabana para a frente e o samba-canção do calçadão para trás?
RC: Não gosto de fazer comparações entre o samba-canção e a bossa nova porque, para muitos, ela é um estágio posterior e superior ao samba-canção. E isso não é verdade. O samba-canção surgiu antes, foi contemporâneo e sobreviveu à bossa nova. Quando ninguém mais queria saber de bossa nova, a partir de 1965, continuava-se a fazer grandes sambas-canção, como “Minha”, do Francis Hime, “Eu e a brisa”, do Johnny Alf, “Pra você”, do Sylvio Cesar, e muitos, muitos outros. Só que eles já não eram chamados de samba-canção, mas de “MPB” – o rótulo maldito e emburrecedor que passaram a aplicar a quase tudo naquela época e, desgraçadamente, vigora até hoje.
GW: Se a especialidade do samba-canção é o coração, como você descreve, qual é a especialidade da bossa nova?
RC: A especialidade dos dois era a beleza. Digamos que o samba-canção fosse menos sincopado e mais delicado.
GW: O bilhete do jornalista e compositor Antonio Maria a José Aparecido – “Se me encontrar dormindo, deixe-me. Morto, acorde-me” – é considerado por muitos como as melhores últimas palavras das letras brasileiras, já que ele morreu horas depois. Concorda?
RC: Sim. Antonio Maria escrevia bem até róis-de-roupa, listas de feira e bilhetes para a empregada.
GW: Você tem sua antologia pessoal dos maiores sambas-canção? Pode ser 3, 5 ou 10 – como queira.
RC: A maior gravação de “A noite do meu bem”, de Dolores Duran, que já ouvi, é a de Lucio Alves. Elizeth Cardoso cantando “Meiga presença”, de seu filho Paulo Valdés e de seu ex-namorado Otavio de Moraes, sempre me emociona – há uma versão estupenda, a cores, no YouTube. Doris Monteiro com “Dó-ré-mi”, de Fernando Jorge; Elizeth Cardoso com “Canção de amor”, de Chocolate e Elano de Paula, e, claro, Maysa, com “Franqueza” , de Denis Brean e Oswaldo Guilherme. Não esquecer de “Meu nome é ninguém”, de Haroldo Barbosa e Luiz Reis, com Miltinho. E umas 200 outras.
GW: Dolores Duran, Helena de Lima, Elizeth Cardoso, Sylvinha Telles, Alayde Costa, Angela Maria, Doris Monteiro, Marisa (futura Gata Mansa), Maysa: falta alguém nesse panteão de musas do samba-canção? Aliás, o samba-canção fica mais autêntico cantado por uma mulher?
RC: Você esqueceu uma mulher citada no livro, que teria sido uma grande cantora, se quisesse: Tereza Souza Campos. A única gravação que conheço dela, a de “Não tem solução”, de Caymmi e Carlinhos Guinle, é de arrasar. O samba-canção não teve musas, mas grandes intérpretes. Aliás, na época, não havia esse conceito de “musa” – as mulheres, como Elizeth, Nora, Doris, Maysa, Mary Gonçalves, Ellen de Lima, se contentavam em ser grandes mulheres. Para mim, as cantoras típicas do samba-canção, que raramente se aventuraram em outros gêneros, foram Nora Ney, Marisa e Maysa. Seria o caso, no futuro, de Nana Caymmi – uma supercantora de sambas-canção. Mas não acho que esse privilégio se limitasse às mulheres.
GW: Dos homens, quem foi o maior sambista-cancioneiro?
RC: Eu arriscaria Tito Madi. Mas como deixar de fora Dick Farney, Lucio Alves, Jamelão, Lupicínio Rodrigues, Agostinho dos Santos, Nelson Gonçalves e o próprio Cauby, quando refreava seus arroubos?
GW: Por que o samba-canção se tornou geografi camente dependente das boates cariocas, com seus “cantinhos mornos e aconchegantes”, tal como você as descreve?
RC: Porque o samba-canção fica melhor num ambiente intimista, com iluminação controlada e em que um casal possa se dizer coisas ao ouvido sem precisar gritar.
GW: Vogue, Sacha´s, Golden Room, Fred´s, Casablanca, Drink. Se esses templos do samba-canção ainda existissem hoje, qual seria o seu preferido?
RC: Para encontrar as pessoas e saber das últimas, certamente o Vogue. Mas, em termos musicais, talvez o Drink – era dirigido por um músico, o organista Djalma Ferreira, ele próprio grande compositor, e seus cantores eram Helena de Lima, Miltinho, Sylvio Cesar.
GW: Você situa em 1965 o estertor da era de ouro do samba-canção. Mas a cançãografia prossegue já em 1966. E 1967 é o ano de “Eu e a brisa” – um dos hinos do gênero. O que houve em 1965 para você fixar essa lápide?
RC: Porque, em 1965, já estavam fechando as últimas boates com música ao vivo. A partir daí, entraram as discotecas, com um público muito mais jovem. Considerei então que aquela boemia do uísque, sofisticada, madura e sedutora – enfim, chique – começou a dar lugar à boemia que temos hoje: a da mochila, do chinelo, do chope e do chulé.
GW: O samba-canção resiste musicalmente até hoje? Onde? Para quem?
RC: Com esse nome, não. Mas qual grande música existe hoje e com que nome? O mercado está limitado ao axé, rap, forró, funk, sertanejos, padres-cantores e “música” eletrônica. Mas, pela quantidade de cantores que ultimamente estão me dizendo que querem fazer shows de samba-canção, quem sabe não poderemos ter um pequeno revival?
GW: Bossa nova ou samba-canção: quem você levaria para uma ilha deserta?
RC: De dia, bossa nova. De noite, o samba-canção.
GW: Em seu horizonte como maior biógrafo brasileiro – de pessoas e movimentos culturais – já existe algum novo personagem ou segmento musical em prospecção?
RC: Obrigado pelas palavras, mas não tenho nenhum personagem ou segmento musical em vista neste momento. Como aconteceu com os outros livros, estou apaixonado pelo samba-canção e não quero traí-lo com nenhuma outra música.
Noitada Típica na Vogue
A foto de capa do livro do Ruy Castro foi tirada na boate que marcou época, na fronteira entre o Leme e Copacabana, como um dos templos do samba-canção. Homens de black-tie, mulheres de longo, rostos colados
Alguns Hinos do Samba-canção
Copacabana – Dick Farney
Caminhemos – Herivelto Martins
Marina – Dorival Caymmi
Nervos de aço – Lupicínio Rodrigues
Canção de Amor – Chocolate (cantada por Elizeth Cardoso)
Tudo acabado – Oswaldo Martins (cantada por Dalva de Oliveira)
Ave-Maria – Vicente Paiva (Dalva de Oliveira)
Sábado em Copacabana – Dorival Caymmi (Lúcio Alves)
Risque – Ary Barroso
Ronda – Paulo Vanzolini
Tereza da Praia – Billy Blanco e Tom Jobim
Chove lá fora – Tito Madi
Se todos fossem iguais a você – Tom e Vinicius
Ouça – Maysa
A volta do boêmio –Adelino Moreira (Nelson Gonçalves)
Meu mundo caiu – Maysa
Eu sei que vou te amar – Tom e Vinicius
Insensatez – Tom e Vinicius
Minha namorada – Carlinhos Lyra e Vinicius
Preciso aprender a ser só – Marcos e Paulo Sergio Valle