Beatriz Milhazes: caleidoscópio na avenida Paulista
A artista brasileira viva mais valorizada do mundo está sendo celebrada em São Paulo com uma retrospectiva abrangente do seu trabalho. Duas instituições de arte na Avenida Paulista unem-se nesta colaboração inédita para apresentar 170 obras produzidas por Beatriz Milhazes nos últimos 30 anos, entre pinturas, desenhos e esculturas, no MASP, e colagens, gravuras e acrílicas, no Itaú Cultural. Reconhecida por suas composições precisas, complexas e vibrantes, as criações da artista plástica são disputadas no mercado internacional e atingem valores da ordem dos milhões de dólares.
A simpatia da artista não surpreende. Uma vez que se conhece o trabalho colorido, cheio de referências da nossa brasilidade e com muita alegria, não se espera menos do que uma criadora sorridente e acessível, com um charmoso sotaque carioca. No ateliê na sua cidade natal, o Rio de Janeiro, cercada pela exuberância da mata próxima, Beatriz cria telas que enchem os olhos desde que estudou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, na década de 1980. Atualmente, o seu trabalho se encontra em instituições artísticas em Paris, Madri, Nova York, Londres e Tóquio. Emprestadas de coleções particulares, é um privilégio para o grande público ter a oportunidade de contemplar de perto cada uma das suas obras de grande apelo cromático – verdadeiras poesias visuais.
Você é a artista brasileira mais reconhecida da atualidade. Ao mesmo tempo que isso é uma honra, seria também um peso?
Eu não recebo isso com negatividade. Eu acho que o fato que me ajudou muito é que tudo veio gradualmente e linear, pois eu sempre tive um crescimento – tanto da obra, do próprio conhecimento da minha linguagem, quanto uma evolução de carreira e de reconhecimento. Os anos 80 foram o meu início como artista jovem e foi nos anos 90 quando eu comecei a ficar mais conhecida aqui no Brasil. E paralelo a isso foi também o meu início de carreira internacional. Eu acho que eu tive tempo para fazer todo esse processo de mudança e resguardar a qualidade do meu trabalho e da relação do ateliê com o meu processo. E finalmente estabelecer uma posição dentro do cenário internacional das artes plásticas e brasileiro, claro. O Brasil hoje faz parte do mundo (das artes), o que é muito interessante, porque quando eu comecei a minha carreira internacional nos anos 90, o país ainda estava muito deslocado dentro desse interesse estrangeiro. E eu acho que foi exatamente o momento quando tudo começou a abrir e incluir países como o nosso, dentro de uma cena mais abrangente. Isso ajudou o olhar sobre a minha obra.
Suas obras transparecem a alegria de viver do brasileiro, por meio de uma dinâmica de cores e movimento. Apesar de apresentar muita engenharia, os admiradores sentem primeiro um choque de energia e vibração. Como você descreve a sua arte?
Apesar de parecer explosivo, o meu processo criativo é racional e ordenado. Eu preciso da ordem para me sentir livre, pra me libertar. Eu necessito de equilíbrio, observação e raciocínio sobre cada etapa: na construção e desenvolvimento das formas, motivos e elementos – e como eles vão construir a composição dentro do processo da abstração. Mas a leitura espontânea do espectador é exatamente o que importa na arte. Fazer você pensar diferente, trazer você para um universo novo. Uma nova possibilidade!
A tela que dá nome à sua retrospectiva é Avenida Paulista. O que você concebeu nela?
O que veio na minha cabeça imediatamente foi a minha relação com São Paulo. Eu não consegui me ater à questão da avenida em si, mas a Avenida como símbolo de uma cidade importante dentro da minha vida pessoal e de história profissional. E histórica em termos de arte. Sou uma artista extremamente ligada ao modernismo, que nasceu em São Paulo através da figura de Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade. E também aos artistas geométricos e concretos que surgiram mais adiante. Busquei a ingenuidade que direcionou uma Tarsila, e como ela trouxe isso para as artes plásticas, como ela fez essa união. Foi por aí que eu fui me guiando. Essa perspectiva do imaginário popular e o modernismo me nutriu muito.
Você cita os nossos modernistas, mas ao mesmo tempo tem muita inspiração pelo trabalho do pintor francês Henri Matisse em suas colagens.
Você vai acumulando processos, informações e observações. Eu tive todo o ambiente da arte brasileira em casa com a minha mãe, que era professora de História da Arte. Daí, quando eu fui aprofundar os meus estudos, realmente digo que eu aprendi a pintar com Matisse. Toda a estrutura do pensamento pictórico veio com ele. E eu comecei a fazer essa união no momento que estava desenvolvendo a minha linguagem.
Mas a sua técnica de pintura é muito diferenciada. Você criou algo novo!
Sim, muito importante pra mim é a descoberta dessa técnica que eu uso, o monotransfer: tenho como pintar e desenvolver os motivos e os elementos fora da tela e depois colocar sobre ela. No final dos anos 80 eu precisei investigar uma outra maneira de atuar sobre a pintura, porque os métodos que eu usava estavam começando a me limitar, ao invés de ampliar caminhos para o encontro com a minha linguagem. Tive que fazer uma pesquisa. Até cola eu inventei! Artista tem um pouco de cientista louco… Eu utilizo um plástico que possibilita que a cor não esmaeça: faço uma película de tinta acrílica como se fosse uma pele e depois o plástico é grudado na tela. Após secagem, essa película fica aderida na lona. E as cores saem extremamente fiéis. Esta técnica abriu portas muito importantes para o meu trabalho.
Qual é o seu suporte preferido?
O centro do meu processo é a pintura. Nesta retrospectiva, me sinto bem representada pela minha obra em papel, mas quando você vê o conjunto de pinturas, você percebe que ali está realmente o eixo central de todo o meu pensamento, de toda a minha real relação com a arte. O trabalho sobre papel me dá prazer e é extremamente importante dentro da minha obra como um todo, porque realmente não posso pintar sempre. Eu estou num momento bem pictórico desde que fiz a minha mostra de Londres, em 2018. Mas, às vezes, eu preciso de paradas longas na pintura, de um, dois anos. E me sinto privilegiada de poder, nas obras em papel – tanto serigrafia, quanto a colagem sobre papel – continuar as questões, reconhecendo a identidade e especificidades. Elas são desafiadoras, e se você der o tempo para escutar as reações daquele material que você está usando, você terá respostas novas. E isso é muito importante, rico e fundamental no meu crescimento e na evolução do meu trabalho.
O seu trabalho tem um conceito considerado decorativo por alguns especialistas. O que você acha deste olhar?
Eu uso elementos da arte decorativa, mas sou uma pintora que introduziu novas questões para o pensamento da pintura abstrata. Eu uso motivos que existem na arte decorativa indígena, na arte popular e na cultura pop para a construção do pensamento da minha obra. São interesses que vêm desse universo como referência para o meu trabalho. A arte decorativa como Matisse também usou no trabalho dele tem uma relação muito forte com a manifestação humana – ela permeia toda a história da humanidade. Existe uma relação quase espiritual com o Belo. Essa relação da poesia é o que me interessa na manifestação humana que é o lidar com o decorativo. Agora, não confundir quando você faz uma arte apenas para decorar, porque não é o meu caso. Eu estou dentro da História da Arte, que não foi feita para decorar ambiente. Ela foi feita para pensar a arte, que é uma manifestação transformadora, e eu faço parte disso.
Alguns setores da crítica de arte sustentam que a arte contemporânea deveria sempre abarcar um viés social ou político…
Eu acho que ser artista já é um pensamento político, uma postura política. Eu sou uma mulher latino-americana que trouxe para o universo do pensamento mundial – e masculino – da arte as questões da minha cultura, dos meus elementos, da visão sobre esse meu contexto brasileiro e carioca. Isto é uma postura política.
Beatriz, você tem uma fila de espera mundial por suas obras. Como você lida com isso?
O que faz qualquer preço se mover para cima ou para baixo são os interessados. Sua carreira cresce, seu nome cresce e você aumenta o número de admiradores por conta da qualidade do seu trabalho. O artista nunca vai conseguir entender uma possível razão que faz o trabalho dele interessar, ou não, a colecionadores e museus. Em todas as áreas da Cultura, não existe uma fórmula de sucesso. Eu tenho certeza de que o que fez o meu nome e solidificação foi exatamente o investimento na obra. Esse é o grande desafio: o interesse sobre o que você faz é a grande chave da vida.
É uma delícia observar nas suas colagens várias embalagens incríveis de chocolates. Você adora chocolate?
Eu não sou chocólatra! Eu colecionava os papéis que me atraem, de balas, chocolates, que são lindos, aí eu utilizava isso eventualmente em colagens que eu fazia para aniversários de amigos, Natal para a família. Eu tinha isso meio embrionário de começar a ver a colagem como obra, pois colagem é o resultado de uma intimidade. Mas ela se introduziu na minha vida de uma maneira bastante presente nesse diálogo com os outros meios. A pintura tem muito mais “virilidade” e o trabalho em papel – mesmo uma gravura maior, mais ambiciosa – sempre guarda uma questão mais íntima e de um processo que é mais delicado do que a pintura.
Qual é o momento de parar e terminar uma tela?
Essa questão é bastante complexa, muito subjetiva. É a questão cromática que me faz parar. É um conflito saudável: quando as cores se encontram nesta harmonia que eu procuro, elas estão prontas.
BEATRIZ MILHAZES: AVENIDA PAULISTA Quando: até 30 de maio de 2021 MASP (Av. Paulista, 1578) e ITAÚ CULTURAL
(Av. Paulista, 149) Agendamento online obrigatório pelo link masp.org.br/ingressos
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Por Laura Wie
Fotos: divulgação