Numa casa-ateliê no bairro do Brooklin, em São Paulo, com a companhia silenciosa de sua cadela akita, o artista continua criando. E para isso não usa apenas a tela em branco, pincéis e tintas, mas inúmeros meios – como programas de computador. Tudo que é humano e é arte lhe interessa, 50 anos depois de sua primeira pintura – ainda um menino idealista que sonhou em viver para a arte e pela arte, sem saber que viver da arte é um ofício muito mais complexo, pelo menos no Brasil. Antonio Peticov é um dos mais importantes artistas plásticos brasileiros em atividade – mas faz sérias críticas ao mundo da arte-business, em sua opinião hoje conspurcada por interesses e vieses nada artísticos. Recém-chegado de uma mostra na África do Sul pré-Copa que exibiu trabalhos com temas de futebol de 11 craques da arte brasileira, Peticov pintou e bordou nesta entrevista a GoWhere.
Confere. Tá bom isso, hein? Com que olhos o Antonio Peticov, artista consagrado de hoje, com 64 anos, desenha o menino Antonio com 14 anos, começando a engatinhar na arte? Há um documentário chamado A Maldição da Monalisa, conduzido por Robert Hughes, maior crítico de arte do mundo hoje, em que ele reconstitui a primeira vez que a Mona Lisa saiu do Louvre para ser vista por mais de um milhão de pessoas em Nova York, em 1963. Ele sustenta a tese de que a maior parte das pessoas que ficaram na fila para ver a mais famosa pintura de todos os tempos na verdade não estavam lá para ver a Mona Lisa – mas para dizer que viram a Mona Lisa. Começava aí a era da arte como espetáculo e negócio. O Andy Warhol reforçou essa ideia: “Podia ser uma foto do quadro, ninguém ia notar. O que valia era o happening”. Essa é a maldição que a Mona Lisa colocou sobre a arte nos dias de hoje. O que isso tem a ver com o menino que começou a pintar há 50 anos? Todos os que entraram nessa história por amor e por romantismo viu o mundo da arte se transformar num mercado onde arte é só o nome de um produto. Um mundo onde valem o ego e as leis de mercado. Onde um Andy Warhol vale 20 milhões de dólares. Um business milionário. O menino tinha sonhos e ilusões em relação à arte que foram sendo deixados no meio do caminho desses 50 anos. Mas, apesar de tudo, a Arte, com A maiúsculo, em letras vermelhas, em negrito e sublinhadas, que meu deu o impulso inicial, ainda é o que me alimenta e me conduz até hoje. Por mais corrompido e pervertido que seja o “mundo da arte”, ainda encontro nele sensações maravilhosas.
Como o menino Peticov deu suas primeiras pinceladas?
Meu irmão mais velho, Walter, era o artista da família. Meu pai comprou para ele um kit de pintura e, de brinde, veio um kit júnior mixuruca, que ficou para mim. E eu deitei e rolei. Nós tínhamos mudado para o Rio há pouco tempo e lá conheci o diretor de arte de uma grande editora, um gênio que pintava, esculpia, compunha, e me identifiquei com ele imensamente. E decidi que queria mser pintor. Embora eu tenha desenvolvido outras formas de arte, fico extremamente orgulhoso quando me vejo ao lado de outros pintores importantes da história. Há alguns anos, tive o imenso prazer de sentar ao lado do Aldemir Martins num avião que ia para Salvador, onde faríamos uma exposição, e tive a chance de contar a ele que meu primeiro trabalho era uma cópia de um quadro dele – um galo evidentemente – que nem cheguei a acabar, pois bloqueou e aí veio outra ideia. Foi o único quadro que copiei na minha formação. O resto é Peticov puro… Nada é puro num menino de 14 anos e na arte em geral – à medida que você conhece mais, mais influências você recebe.
Inspiração existe?
Existe o impulso. Por que o menino de 12 anos quer ser bailarino? Ou fazer foguetes? Está no DNA, não sei. Mas para mim a inspiração aparece raras vezes quando estou com o pincel na mão. Aliás, esse negócio de inspiração é uma coisa meio romântica. É raro o pintor que pensa nisso. Esse papo é de leigo. Pintar é meu job, é meu trabalho.
Quando se olha um quadro de Vermeer, como A Moça com Brinco de Pérolas, em que a moça e a pérola parecem fotografias, e um de Jackson Pollock, em que latas de tinta são despejadas meio a esmo numa tela em branco no chão, a impressão que o leigo tem é: o primeiro, só um gênio faria; o segundo, qualquer um. É possível distinguir a arte absolutamente técnica da arte puramente instintiva?
O exemplo do Pollock é genial. Eu tive uma escola de pintura por sete anos e vi muito garoto tentando fazer Pollock. Tudo uma merda total. O Pollock tinha sensibilidade, saber, história, background e talento. Tem gente que se admira por certos quadros meus, hiperrealistas, perfeitinhos, uma montanha idêntica a uma montanha. Mas a montanha está lá. A referência é óbvia. É fácil copiar o real. Difícil é fazer abstrato, que não existe. Não tenho onde me basear. A pintura abstrata não representa, ela se apresenta. Vermeer é do século 17. Pollock, da era nuclear. Naturalmente, suas visões do mundo são radicalmente diferentes. Mas gênios, ambos.
Em 50 anos de pintura, você já deve ter passado por diversas fases. Por que um pintor tem fases?
Quem tem fase é lua. Há 15 anos, quando organizei minha obra para fazer um site, percebi que tive fases – mas não cronologicamente. As fases são linguagens que uso por um tempo, paro e depois retomo – como As Partituras, ou minha pintura geométrica, ou geométrica abstrata.
Cinquenta anos depois de pegar no pincel pela primeira vez, e dormindo dentro de seu ateliê, você ainda acorda e corre para o pincel?
Depende de eu estar fazendo um quadro gostoso. Mas uma coisa é certa: não vou dormir se tenho vontade de pintar. Continuo pintando. Para pintar, há uma série de fatores externos independentes de nossa vontade – um assistente, o material todo arrumado, condições práticas, imagens de referência, saco.
Por que você pinta hoje?
Eu pinto para me manifestar – se bem que eu me expresse muito no computador e na escrita. E porque pintar me dá muito prazer. Ver a coisa pronta é quase um orgasmo. Quando eu tinha sete anos, viemos de Assis para morar em São Paulo e ficamos hóspedes de uma família amiga de meus pais, e o sujeito tinha uma pequena indústria de calçados. Lá tinha um quadrinho de um sapateiro, com um sapato na mão, e os seguintes dizeres: “Mais um bom calçado feito à mão pelas Sapatarias De Luxe”. Cada quadro que eu acabo eu digo: “Mais um bom quadro feito a mão por Antonio Peticov”.
Você pinta o que o mercado gosta?
Ah, eu conheço tanta coisa que sei o que vão gostar e o que vão odiar. Mas não estou nem aí. Sempre tem um chinelo velho para um pé doente. Há sempre um cliente para um quadro. Pode parecer depreciativo, mas não é. Tenho histórias fantásticas de quadros meus que produziram impressões negativas de um lado e altamente positivas do outro.
Qual foi sua obra mais cara até hoje?
Foi um trabalho de 50 mil dólares que fiz para a sede do McDonald´s em São Paulo, composto por 10 partes, onde usei várias colagens de pintura, do figurativo ao expressionista. Mas há trabalhos meus mais caros, como um painel de 54 metros de altura para o átrio de um prédio em São Paulo, e murais em estações do Metrô.
Por que um quadro brasileiro, como o da Beatriz Milhazes, chega a ser vendido por um milhão de dólares?
Oferta e procura e marquetagem. Há leis econômicas por trás desse mercado. Fui vizinho do Basquiat, em Nova York, quando uma tela dele, já cara, valia 30 mil dólares. Hoje pagam 10 milhões de dólares. Quem comprou por isso jamais venderá mais barato. Há toda uma mecânica financeira por trás da arte hoje.
Há um jeito de um artista valorizar seus trabalhos? Pintar pouco?
Você está fazendo essa pergunta para a pessoa errada. Essa é a pergunta de 1 milhão de dólares. Mas é evidente que esse mercado hoje exige conchavos com críticos de arte, galeristas. Sou elogiado amplamente por pessoas que vêm a meu ateliê ver meus trabalhos. Mas poucas pessoas vêm ver meus trabalhos. Muitas pessoas vão ver a Beatriz. Por quê? Porque tem quem leve. É uma marquetagem dirigida a esse contato. Eu estou fechado para o mundo porque tudo o que me interessa é estudar. Sei que preciso criar bolhas externas nesse meu casulo. Preciso vender, preciso dedicar um pouco de tempo ao mercado, mas não sou comerciante.
Você é da geração que, nos anos 60, se rebelou contra a ditadura e a caretice reinante e buscou níveis de percepção alternativos. E foi o primeiro brasileiro preso com LSD, 1970. Como foi isso?
Três anos antes eu cometi um ato que não foi entendido. A direita me esculhambou. A esquerda me fuzilou. No espírito hippie, que imperava na época, e tentando expressar meu sentimento contra o regime militar vigente, ofereci um maço de flores ao presidente Costa e Silva, na inauguração da Bienal. Foi um gesto de protesto óbvio, confundido por alguns. Eu estava vestido com um uniforme preto, como se estivesse de luto, cheio de medalhas, tirando sarro dos militares. Não fui compreendido e a partir daí comecei a ser perseguido. O lance do LSD foi armação. Naquela época, todo mundo tinha ácido. O ácido abria portas, literalmente. Mas a prisão em si foi armação. Acabou sendo útil, porque fui forçado a sair do Brasil e desenvolvi minha carreira lá fora. Fiquei um ano e meio em Londres. Em Milão fiquei 14 anos. A Itália me enriqueceu e me encantou. Depois, Nova York. Fiquei 24 anos fora do Brasil. Mas acho que essa ausência acabou alterando meu valor de mercado. Faltou na minha carreira um tempo de permanência aqui para martelar o prego.
Você não tem marchand?
Não. Marchand gosta de artista morto ou iniciante, ou seja, com produção controlada.