A voz de Deus com Cid Moreira
O mais famoso locutor em língua portuguesa de todos os tempos… A voz deDeus
Durante 27 anos, em 80% dos lares brasileiros, foi o mais aguardado Boa Noite do País. Um “boa noite” dito por Cid Moreira – o mais famoso locutor em língua portuguesa de todos os tempos – era uma saudação de primeira necessidade, ao final do Jornal Nacional. Mas em 1996, de repente, a bancada do JN, onde Cid se sentava desde a primeira edição, perdeu aquela figura mitológica, que lia as notícias com uma voz que poderia dublar Deus, se Deus precisasse de dublador. Na biografia de Cid que acaba de ser lançada, escrita com carinho e intimidade por sua mulher, a jornalista Fátima Sampaio – com o inevitável título de Boa Noite – ele confessa que, ao sair do JN, entrou em crise de abstinência. Mas, se a voz do povo é a voz de Deus, ele logo encontraria um novo caminho: gravar, com “aquela” voz, todo o texto da Bíblia. Um trabalho monumental, que consumiu anos e gerou 120 CDs. E o Cid Moreira bíblico se tornaria um novo fenômeno. Nesta entrevista exclusiva a GoWhere, ele diz, aos 82 anos, e com a voz mais bela do que nunca, que tudo isso estava escrito. Para ser lido com a voz de Cid Moreira
Por Celso Arnaldo Araujo e Lilian Anazetti Coordenação Sidney Osiro Fotos Thais Antunes
Vivemos hoje a era dos falsos mitos. E você é um mito de verdade. Você tem a sensação de ser um mito?
Nenhuma. Eu continuo o mesmo. Às vezes eu até posso falar e fazer coisas porque eu acho que não sou eu, dá para entender? Quer dizer: sou eu e não aquilo que o pessoal pensa que eu sou…Mesmo afastado do vídeo há 15 anos, quando você pede um jornal na banca o cara reconhece sua voz?
Aqui e no exterior, pela voz e pela imagem. Qualquer país que eu vá encontro brasileiro. Uma vez eu estava na Quinta Avenida, em Nova York, esperando abrir o sinal, veio um cara e fez ‘plim, plim’. Me pedem muito para falar “Boa Noite” ou chamar o Mister M. Mas está mudando: uma grande parte das pessoas está relacionando a minha imagem com a Bíblia e isso me agrada bastante, me agrada mais. Agora eu trabalho para o chefão (risos)…Você gravou todo o Novo Testamento, de ponta a ponta?
Gravei o Novo e o Velho, de ponta a ponta. A Bíblia inteira.
Quantas horas para gravar tudo?
Não sei, mas foram 120 CDs completos.
Você não põe carne na boca há 50 anos, é isso?
É isso mesmo. Eu acredito, e aí entra a minha fé, que Deus vem me preparando desde pequeninho para essa minha nova fase. Eu não entendia nada de Bíblia, nem de coisa nenhuma, e a família toda se reunia no quintal da casa, para tomar sol, chupar laranja, e tal. Eu pegava a Bíblia e lia um provérbio. Eu nem sonhava que um dia iria ser locutor e que gravaria a Bíblia inteira. Acho que vim preparado para isso.
O que ainda falta fazer nesta nova fase?
Eu estou sonhando agora em produzir clipes, a exemplo do que já fiz no Fantástico – como o Sermão na Montanha, na época do Boni. Ele mandou ônibus, carros, perua, uma baita produção, para o Dedo de Deus, em Teresópolis, para gravar o Sermão da Montanha. Eu gravei o Salmo 23, Isaías e o Desiderata. Eu sonho com isso e quando eu sonho é fogo.
Cinquenta anos sem carne. Qual a repercussão dessa abstinência para o seu organismo?
Maravilhosa. Jogando tênis, o pessoal me dá em torno de 60 anos. Às vezes bato bola com minha mulher e coloco mais um garoto para fazer dupla com ela. Jogo contra os dois numa boa. Faço isso para suar.
Ouvindo a sua voz no vídeo, anos atrás, você acha que voz envelhece?
Absolutamente. Minha voz hoje está melhor, pois hoje eu sei o que posso fazer com ela.
Você entrou em crise quando te tiraram do Jornal Nacional?
Sabe que me faziam essa pergunta faz tempo? Como é que vai ser quando você sair? Eu não tinha resposta. Eu estava no Jornal Nacional desde o primeiro dia. Quando finalmente aconteceu, eu senti o que qualquer um sentiria: e agora, o que é que eu vou fazer às 8 da noite? Foram 27 anos apresentando o Jornal Nacional. Nos últimos anos, eu chegava à Globo por volta das 4 e meia da tarde, para gravar comerciais. Aliás, naquele tempo, num intervalo de 10 comerciais, sete eram com minha voz. Fiquei meio perdido (Fátima faz uma observação: “No começo, ele ia fazer ginástica no horário do Jornal Nacional”).
Você ainda é funcionário da Globo?
Sim, recebo todos os direitos como funcionário. São 41 anos de empresa agora em maio.
É verdade que você não frequenta a casa de ninguém?
Não, eu fico em casa gravando o dia inteiro. Hoje eu gravo mensagens de 1 e 2 minutos para a Telefonica, Mobile 1 e 2. É a mesma empresa que está lançando o iPad no Brasil.
Você pode fazer trabalhos para qualquer empresa?
Não, a minha imagem só pode aparecer parada. E em outra TV não pode. Posso trabalhar para outras mídias, mas só tenho autonomia para a Bíblia.
Se uma pessoa começar a ler a Bíblia hoje, vai terminar quando?
Um ano, de acordo com os estudiosos.Quando começou essa fase do Cid Moreira bíblico?
Na década de 90. Mas minha primeira gravação ligada a um texto religioso tinha sido o Desiderata, um manuscrito que encontraram na velha Igreja de Saint Paul, Baltimore, datado de 1692 e que gravei para o Fantástico, em forma de clip, bem no começo do programa, em 1973. Um sucesso: pediram bis, ele foi repetido e reverberou durantes muitos anos. Outro dia, numa entrevista que dei à TV, passaram esse clip.Aliás, como é que você se sente se vendo na TV há quase 40 anos?
É aquela piada da velhinha: há quanto tempo a senhora não transa? E a velhinha: ihhhhhhhh!! Nossa vida é composta de fases. Eu encaro a velhice brigando com ela. Eu tenho uma miniacademia em casa. Diariamente eu faço mais de 5 quilômetros, brigando com o tempo. Eu brigo contra o minuto.
Sua opção por uma dieta vegetariana começou quando?
Eu tinha uns 30 anos.
Sua saída foi preparada? Você foi avisado com antecedência?
A preparação foi indireta. O Armando Nogueira saiu da direção-geral, aí veio o Alberico (Souza Cruz). Alberico saiu, entrou o Evandro Carlos de Andrade, que era editor-chefe do jornal O Globo. Ele já veio com essa missão de mudar tudo. Começou remanejando o pessoal. O Chapelin, meu colega de bancada no Jornal Nacional, foi chamado pela direção e me disse: “Olha, eu vou começar a apresentar o Globo Repórter”. Era um sinal. O Evandro sugeriu ainda que ele apresentasse o jornal nas folgas dos novos apresentadores, mas o Chapelin não quis. Decidiu ficar apenas no Globo Repórter. Também jogaram o Celso (Freitas) pra outro lado. Mudaram o esquema todo. Chegaria a minha vez, mas fui o último a saber, fui o marido traído (risos). Então o Evandro me liga no celular e pergunta se eu posso passar na Globo. Eu estava perto e fui. Sentamos. E ele falou: “Eu tenho uma notícia boa e uma má. A boa é que você vai ganhar mais e vai ser nosso editorialista. A má é que você vai ser só o editorialista…”
Mas nem todos os dias tinha editorial?
Olha esse negócio de editorialista durou uns seis meses. Começou com uns três por semana, depois dois, um. Às vezes o editorial era lido no noticiário da hora do almoço. Meu desligamento do Jornal Nacional foi acontecendo aos poucos.
Pior foi o modo como tiraram o maestro John Neschling da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, depois de 10 anos. De férias na Europa, recebeu um e-mail dizendo que ele não regeria mais a orquestra…
Comigo não foi assim. Foi com muita vaselina. Mas, de fato, abriu-se uma lacuna em minha vida. Comecei a fazer mais ginástica, jogar mais tênis. É aí que a Bíblia entra de novo na minha vida. De repente, toca o telefone, era uma firma aqui de São Paulo que queria que eu gravasse o Novo Testamento. Quanto eu cobraria? Eu disse: “R$ 400 mil”. Foi aquele silêncio (risos).
Por esse dinheiro, eles contratavam o próprio Jesus Cristo…
É, eles acharam muito e eu disse que iria ver se dava pra reduzir. Chequei o número de páginas que eu tinha de ler e era muita coisa. Mas aí surgiu algo dentro de mim… lembrei do meu tempo de garoto, lendo a Bíblia. Eles me falaram que a verba disponível era 50 mil. Perguntaram quanto tempo eu demoraria para gravar. Uns 20 dias. Eles tinham pressa. Aceitei. Eu gravava todos os dias, inclusive aos sábados, 6 horas por dia, e demorei 33 dias. O que é o número 33? A idade de Cristo quando morreu. Olha, fiquei até arrepiado.
E depois de gravar o Novo Testamento, o Mar Vermelho se abriu?
Estou saindo para o tênis, toca o telefone: “Estamos querendo lançar cds a preços módicos, em bancas de jornais, com passagens bíblicas. Só trechos mais populares.” Era o auge do CD, um sucesso vendia 1 milhão de cópias. Vendi mais de 30 milhões. Então, veja só, aquela brecha que ficou aberta quando eu parei de apresentar o JN foi preenchida rapidinho (risos).
A voz de Cid Moreira, a voz mais famosa do Brasil, é uma voz cara?
Depende. Posso fazer até de graça. Ou não ter preço, porque não posso fazer. Eu fui contratado da Mallboro, por quase 15 anos, para fazer a assinatura final “venha para onde está o sabor, venha para o mundo de Mallboro”. Hoje eu não poderia mais fazer porque tenho um contrato de exclusividade com a Globo. O último ‘round’, digamos assim, na área comercial, foi quando gravei o comercial da Pepsi Cola, o do macaco. Foi a gota d´água. Aí a Globo me chamou e disse que iria me dar mais tanto para eu não gravar mais propagandas.Você mantém algum cuidado especial com a voz?
(Fátima: “Muito beijo”). Sangue novo… Bom, houve uma fase em que eu usava sal marinho, sal grosso. Vinha todo mundo pedir uma pitadinha. Era na fase do rádio. Então a Elisete Cardoso, a grande cantora, me recomendou cravo da Índia. Eu comecei a usar muito, ficava mascando todos os dias. Me deu uma gengivite… Agora, esse negócio de locutor não tomar gelado é mito. E mel, para mim, faz mal, piora e dá pigarro. O que mexe muito com a voz é o cara ficar estressado, fumar.Um outro mito: você apresentava o JN de bermuda?
Todo mundo me pergunta isso. É verdade – mas foi só uma vez. Era Carnaval no Rio, eu estava descendo de Itaipava para o Rio às 3h, 3h30, mas choveu muito, ruas cheias d´água, caiu árvore, barreira, cheguei em cima da hora. Até hoje sonho com isso. Eu chegando na hora do jornal e colocando a gravata. O bermudão ficou. Mas foi uma vez só. Souberam e me comunicaram que era proibido e tal…
Você lembra de algum erro lendo, alguma grande barriga?
Sim, mas não no Jornal Nacional. Trabalhei com o Fernando Barbosa Lima no Jornal de Vanguarda, que era feito na porta da TV Excelsior, em Ipanema, com ônibus parando, gente passando. Um dia peguei um script e me deparei com o nome de um ministro grego que nunca tinha ouvido falar, o Papadopoulos. E eu li “o papa deu pulos” (risos).
Eu suponho que o texto que mais lhe deu desprazer de ler foi o “Direito de resposta” do Brizola, metendo o pau na Globo, que a Justiça obrigou o Jornal Nacional a veicular…
Foi constrangedor. Primeiro houve um texto, que eu li no meu editorial, espinafrando o Brizola. Aí veio o direito de resposta, que está aí no Youtube, e eu li – descendo o porrete no Roberto Marinho e na Globo. Mas tomei cuidado para ler corrido, sem valorizar o texto.No livro da Fátima, ela fala de suas manias. Uma delas:: você tem um consultório odontológico em casa para limpar os dentes…
Tenho uns ferrinhos, sim, pois tomo muito cuidado por causa de um problema grave de gengivite. Ainda em Taubaté, fui a um dentista animalesco, que me ferrou toda a gengiva com motor e lixa. Encontrei um periodontista no Rio que me recuperou. Aí eu comecei a fazer a manutenção em casa. Meu fio dental é o ferrinho.Na biografia, você diz que aquela foto na banheira, para a revista Caras, foi o maior mico de sua vida. Como é que você, tão discreto, entrou nessa?
A sessão de fotos demorou muito. Houve um intervalo, eu até esqueci do fotógrafo e entrei na banheira da minha casa para relaxar. Comecei a treinar o abdome, subindo devagarinho. E o fotógrafo batendo as fotos. Quase que fui para a rua por causa disso. Bati na trave!
Para terminar, uma pergunta-clichê: quem é Cid Moreira hoje?
Aos 82 anos, tenho uma mulher maravilhosa, que me incentiva muito. É um Cid com muita disposição – que eu ainda tenho – para jogar tênis, fazer ginástica e trabalhar. E isto aqui é entre homens: não preciso de nenhum remédio.