Meio século à mesa paulistana
Numa cidade em que o índice de mortalidade precoce de restaurantes é alarmante, dá gosto entrar (e comer) em casas paulistanas que servem qualidade e tradição há mais de 50 anos. São esses justamente as estrelas do livro “50 restaurantes com mais de 50”, que a chef Janaína Rueda (do impecável Bar da Dona Onça, seríssimo candidato a chegar aos 50 em 2058) e o jornalista Rafael Tonon acabam de lançar – destacando os vovôs da gastronomia paulistana, quase todos ainda nas mãos das famílias fundadoras. Da lista dos 50, escolhemos estes 10 heróis de nossa restauração.
Por: Celso Arnaldo Araujo
Para um restaurante, chegar aos 50 talvez seja mais difícil do que para qualquer outro tipo de empresa. Nas estatísticas levantadas por Janaína e Rafael, de cada 100 casas abertas em São Paulo, 35 fecham no primeiro ano e só três funcionam por mais de 10. Estendendo essa projeção para 50 anos, o número de sobreviventes é próximo de zero. “É preciso enfrentar crises políticas e econômicas, mudanças na paisagem urbana e do perfil dos clientes, brigas na família, mudanças de equipe, preços dos ingredientes – e ainda assim perseverar, insistir”, diz a chef Janaína, que se disse inspirada a querer basear sua história nesse ramo, em 2008, nos restaurantes do livro.
1920 – Fasano
Quase centenário, é a marca-império dos restaurantes de São Paulo. Fundado pelo milanês Vittorio Fasano, que chegou a São Paulo em 1902, o Fasano começou como brasserie, no centro da cidade. Mudou-se para a Rua Vieira de Carvalho, já como restaurante de alta gastronomia, e ganhou uma confeitaria na Rua Barão de Itapetininga. Hoje instalado no lobby do hotel que leva seu nome, no bairro dos Jardins, continua prestando reverência aos clássicos italianos – como a quase secular Cotoletta alla milanesa. Sem mencionar o Tiramisù, que ali começou sua trajetória brasileira.
1924 – Cantina Castelões
A láurea é inquestionável: naquela pacata rua do Brás, a Jairo Gois, onde está até hoje, 93 anos depois, a Castelões foi o primeiro estabelecimento da cidade especializado em pizzas. Além de ser a mais antiga pizzaria de São Paulo em funcionamento, desde 1950 administrada pela família Siniscalchi, a Castelões é a história viva da pizza. A que leva o nome da casa (foto acima) talvez seja a mais famosa da cidade – com muçarela abundante e calabresa bem fritinha, uma receita hoje reproduzida em centenas de pizzarias. Assada a quase 700 graus, vem com a borda tostada na medida. Tudo lá respeita as origens, mas com vigor. É uma glória comer uma pizza no Brás de 1924.
1931 – Cantina C…que Sabe
Uma das primeiras cantinas a se instalar no Bixiga, o italiano Francesco Stippe transformou sua casa inicialmente em uma pensão que atraía os imigrantes para pousada – ou passantes para uma boa marmita italiana. O sucesso transformaria o local numa autêntica cantina – inaugurando o hábito de decorar o salão com fotos de clientes ilustres, depois estendido a outras comedorias italianas da região. A C…Que Sabe!, nome oriundo da dúvida sobre como batizar a casa, hoje é administrada por Bruno Stippe, neto do fundador, que resgatou as raízes da casa e dos quatro avós, vindos de diferentes regiões da Bota. A lasanha C…que Sabe, com massa verde e molho rosado, é receita de sua avó. Bruno, não à toa, é o presidente no Brasil da Federazione Italiana Cuochi (cozinheiros).
1942 – Cantina Roperto
Surgiu de forma despretensiosa, como a maioria das cantinas da cidade – um lugar para se comer uma massa e tomar um gole de vinho, aberto pelo imigrante calabrês Caetano Roperto, inicialmente no centro da cidade. Em 1942 veio para o Bixiga, juntar-se a outras cantinas pioneiras. A Rua 13 de Maio começava a se tornar um corredor gastronômico no coração da Bela Vista. Pelo empenho dos descendentes em manter a qualidade, a Cantina Roperto – hoje comandada por Afonso Roperto, neto do fundador – resistiu aos tempos e continua atraindo famílias inteiras para seus almoços e jantares “da mamma”, onde predomina sua majestosa perna de cabrito (foto).
1946 – Bolinha
A mais famosa feijoada da cidade começou a fervilhar de verdade 30 anos depois da abertura do Bolinha pelo motorista de praça Affonso Paullilo, cujo apelido intitulava a casa. Inicialmente, servia pizzas e pratos à La carte. Em 1952, para celebrar a vitória de seu time de várzea – e várzea era na época a região da Avenida Cidade Jardim, onde a casa está instalada até hoje – ele preparou uma feijoada completíssima. Tão boa que passou a ser exigida pelos clientes – e servida às quartas e sábados, os tradicionais dias paulistanos da feijoada. A fama obrigou Paullilo a produzir seu carro-chef todos os dias da semana. O menu do Bolinha inclui outros pratos brasileiros, como rabada, dobradinha e virado. Mas a feijoada, claro, é a atração principal. Nos 70 anos da casa – hoje tocada pelos filhos de Affonso, José Orlando e Paulo Affonso – é a grande estrela do recinto.
1950 – Almanara
O mais antigo e mais famoso árabe da cidade, o Almanara nasceu na pequena Rua Basílio da Gama, centro da cidade, pelas mãos do imigrante libanês Zuhair Cury. Cinquenta e sete anos depois, o restaurante matriz continua no mesmo endereço – mas seu sucesso permanente se multiplicou por outros 13 endereços da cidade. O Almanara virou uma grife da culinária árabe no Brasil. Mas a velha matriz, em impecável estilo art-déco, é a única das casas que serve em estilo rodízio, começando pelo trio sagrado das entradinhas libanesas: babagnuche, homus e coalhada seca. Coube ao Almanara, hoje comandada por Douglas Cury, filho de Zuhair, difundir esfihas e kibes como queridinhos da paulicéia.
1953 – Ca´d´Oro
Inaugurado na Rua Barão de Itapetininga, Ca´d´Oro três anos depois mudou-se para a mesma Basílio da Gama do Almanara, a bordo do hotel de mesmo nome. Mas foi na Rua Augusta, no lado hoje conhecido como Baixo Augusta, que o hotel fundado por Fabrizio Guzzoni teve seus dias de fausto, por sua hospedagem estreladíssima e por abrigar um dos mais chiques restaurantes da cidade, com pratos logo tornados clássicos, como o cenográfico Bolito misto alla piemontese (acima), um magnífico cozido servido num carrinho de mão. O Ca´d´Oro fechou as portas em 2009, com a venda da propriedade para um gigante da construção civil. Sete anos depois, porém, renasceu no novo complexo ali erigido. E o novo/velho Ca´d´Oro continua impecável.
1954 – La Casserole
O indispensável mercado das flores do Largo Arouche ainda é vizinho desse bastião da resistência da cozinha de bistrô em Sampa – e no hoje degradado centrão. Fundado pelo casal Roger e Fortunée Henry, o La Casserole permanece nas mãos caprichosas da família Henry, agora com a filha Marie-France no comando. O bistrot dos Henry continua impecável, em comida e serviço – um restaurante de outros tempos, nestes tempos. Um viagem a Paris, com escala no Largo do Arouche. Confit de pato, Cassoulet, Steak Tartare – onde comer melhor, 63 anos depois?
1958 – Speranza
O que dizer da pizzaria que introduziu a pizza Margherita em São Paulo? Ou o Tortano, o pão de lingüiça, e o calzone, a pizza fechada? A família Tarallo fez muito pelo universo das pizzas no Brasil – e continua fazendo, agora através dos netos de dona Speranza, Paola, Monica (foto), Francesco, que mantêm a tradição e a qualidade com uma dedicação diuturna. Para os Tarallo, a memória, no ramo gastronômico, é mais que um quadro na parede.
1960 – Dinho´s
Fuad Zegaib (foto), filho de imigrantes libaneses, poderia ter optado por um restaurante de comida árabe – mas começou com uma casa de lanches. Logo daria sua guinada definitiva para o churrasco, apostando num conceito novo nos anos 60 – carnes com serviço à La carte e garçons sem roupa de gaúcho, como era a norma nas churrascarias paulistanas. Fuad investiu também na melhora e na diferenciação dos cortes. Ajudou a difundir o bife de tira e principalmente a picanha – o Dinho´s teria sido o berço desse queridinho dos cortes no Brasil. Hoje Fuad tem a companhia do filho Paulo na administração da casa – ainda no mesmo endereço da Alameda Santos. Seus bufês variados – com feijoada, frutos do mar e grelhados como estrelas – estão entre os mais fartos da cidade.