C… Que Sabe: a cantina mais italiana de São Paulo
Sabe tudo de cozinha italiana
Ele é mais do que um chef – chega a ser uma instituição, uma entidade, em defesa apaixonada da cozinha italiana de raiz, que seus avós estabeleceram no Bixiga no longínquo 1931, no mesmo endereço onde a Cantina C…Que Sabe! se tornaria um ponto turístico-gastronômico da cidade. E que ele agora transmite aos poucos ao filho – que desistiu do futebol para ficar na cozinha. Bruno Stippe e sua família formam uma espécie de embaixada da autêntica “cucina” italiana na cidade.
Por: Celso Arnaldo Araujo
Quando começou, não tinha nome. Era um pensão alimentícia – sem nenhuma conotação jurídica… Era a casa da família, na hoje Rua Rui Barbosa, coração da Bela Vista, que servia pratos de pensão para os italianos esfomeados da região. Era 1931. Na frente da casa-pensão, havia duas canchas de bocha para o lazer da italianada. “Os italianos que moravam aqui vinham comer e fazer marmita”, conta Bruno, baseado no relato de sua avó, a Mamma Rosa de lembranças e lições marcantes para o menino, o adolescente e o homem. “Começou a ter muito fluxo de cliente, resolveram abrir restaurante”. O Mamma Rosa. O avô de Bruno, marido da Mamma, era o “cuoco particolare”, o personal chef, de ninguém menos que os Matarazzo. “Vovô, quando chegava da mansão do conde, finalizava os pratos do restaurante. Em 1945, minha avó foi considerada a rainha da lasagna de São Paulo”. Bruno teve portanto a quem puxar – tal como a massa “puxada” a um molho siciliano genuíno. Um dia, Rosa ficou doente e um irmão do avô chegou da Itália para ajudar no negócio, mudaram o nome da casa para Pepperone. Mas logo a receita desandou: o homem se rodeou de amantes brasileiras – e… morreu. Roberto, o pai de Bruno, já bem rodado no mercado gastronômico, comprou a sociedade, decidido a “não deixar o local onde nasceu ser destruído”. O problema é que o pai tinha vendido outro restaurante no centro e não pode-ria abrir mais um italiano na região – o contrato incluía essa quarentena. A saída seria internacionalizar a cozinha e dar-lhe um nome não italianado. Que nome? Bruno tinha 11 anos e se lembra da circunstância em que surgiu o curioso nome da casa – ele sentiu a sugestão literalmente na carne. Bruno lembra-se de estar no Landau dos pais, voltando da sauna unisex que todos frequentavam no centro da cidade. Roberto então perguntou à mulher: “Onde vamos almoçar, mamãe?”. E ela: “Cê que sabe, papai”. Deu um estalo em Roberto: esse era o nome da nova casa. Bruno relembra: “Meu pai abriu os braços de euforia e acertou o cotovelo em cheio no no meu nariz”. E surgia o novo restaurante – no mesmo ponto. Faria cozinha internacional – Lombo à francesa, Frango à Cocotte, Haddock à belle meunière – como era moda na cidade, inspirado pelo Terraço Itália. Em um mês, a casa ganhou o novo luminoso e, logo depois, um conceito: “Aqui virou casa de artistas, com fotos na parede. Tinha show de ventríloquo, de mágico argentino, show de tango, conjunto italiano”. Roberto Stippe era, ele próprio, um artista. Além de ator ocasional, foi o primeiro homem a fazer programa de culinária na TV: O machão e a frigideira, na TV Gazeta. Bruno seguiria essa trilha diante das câmeras – hoje, é o mais antigo culinarista da TV em atividade, há 27 anos no ar com Pilotando o fogão, ao lado do irmão Victor e do filho Micchelli Bruno.
Tradição é o principal ingrediente da cozinha familiar dos Stippe. Oitenta e cinco anos instalados no mesmo ponto do velho Bixiga – o mais antigo restaurante da cidade num único endereço e sob comando da mesma família. Já o Bixiga mudou – mas não muito. “Eu era criança e havia aqui a velha guarda da boemia, nicho da italianidade, dos artistas que frequentavam a casa de meu avô – registrados nas fotos em preto e branco das paredes do C…Que Sabe! Teve época em que o Bixiga virou o bairro dos barzinhos do rock. Depois, de boemia de forró, e em seguida voltou a ser de boemia retrô. O Bixiga é um bairro eclético – que substituiu a mão de obra escrava pelos imigrantes italianos. Todos os cortiços eram habitados pelos italianos, clientes de meu avô. Depois, começaram a vir os nordestinos. O Bixiga hoje é terra de italiano, de samba, de forró – a maior concentração da cidade de teatros, escolas de música, dança”. Bruno é, por todos os méritos, embaixador desse Bixiga de todos os povos. E da cozinha italiana no Brasil, como presidente da Federazione Italiana Cuocchi (cozinheiros) no Brasil e na América Latina, e Chef Professor de Cozinha Italiana no Centro Europeu, em Curitiba, entre outros títulos honoríficos e pedagógicos. Se hoje é professor, um dia foi aluno – desde muito, muito cedo.
Em alto-mar
“Meus avós me ensinaram a fazer a cozinha de base: molhos, ponto de massa, segredinhos de como deixar gnocchi macio, como tirar acidez no molho de tomate – não se põe açúcar, nem leite, mas cebola roxa. Como assar um cabrito. Já meu pai foi referência em gastronomia diferenciada, visão bem à frente, uma visão de mercado. Aprendi com ele várias ramificações – cozinha de cantina, cozinha de bufê, cozinha industrial – ele foi me preparando, me dando base. Com 18 anos, fui convidado a trabalhar no Eugênio Costa, último navio a ter alta gastronomia”.
Em 1994, assumiu a cozinha do C…Que Sabe! sob a condição de que a cozinha da casa se italianizasse novamente. “E a tendência futura será regionalizar ainda mais – comida piemontese, siciliana, calabresa. É o que está acontecendo no mercado. Minha perna de cabrito é 100% siciliana – não leva tomate, é braseada no vinho. Faço um carbonara clássico, de Lazio, de Roma. Ragù alla bolognese. Arrozes e massas recheadas do norte da Itália”.
Agora é hora de Bruno falar em terceira pessoa. Ele pode: “O chef Bruno virou uma marca da autêntica gastronomia italiana no Brasil, aqui vêm pessoas do Brasil todo. Um ícone de referência, de amizade, não tenho chefs inimigos, não falo mal de restaurante, sou contra o estilo MasterChef. Os chefs formam o caráter das pessoas, por isso não podem humilhar. Sou da velha guarda de uma cozinha casalinga. Cozinha da mamma e da nonna”. Com nove anos, ele fez seu primeiro prato sozinho: o Camarão a Bristol do Recanto Anhanguera, recheado com catupiry à milanesa e batata palha, que costumava comer com os pais. “Aprendi com a boca”.
Beijando as mãos
Os atuais assistentes de Bruno começaram lavando prato. “Não contrato cozinheiros profissionais”. E seu amor pela cozinha começou numa cena real com clima de neo realismo italiano. “Nesta mesma mesa”, aponta Bruno para o local onde está a equipe de Go´Where Gastronomia, “aconteceu um fato que marcou minha vida. Era o tempo do Pepperone, com minha avó ajudando a fazer as massas. Eu tinha nove anos e já estava na cozinha. O cliente mandou chamar minha avó. Ela achou que ia tomar bronca, me lembro dela esfregando as mãos no avental para tirar a farinha e ver o cliente. Mas não era bronca. Ele se ajoelhou, beijou as mãos da mamma Rosa e disse, entre lágrimas: ´Muito obrigado. Sua lasanha me fez lembrar de minha mãe’”. O irmão Victor, que brinca de cozinha mas cuida mesmo é da administração da casa, ao lado da mãe, especialista em compras, resume assim o cuoco Bruno Stippe: “Nunca vi um cara com uma mão igual ao do meu irmão. Ele pega uma coisa que nunca fez, e faz perfeito. Pega um ovo e faz um banquete”. Bruno, com sua figura cenográfica, descreve seu prazer de estar na cozinha por meio de outra cena familiar. “Um dia meu filho Miccheli foi para um time de Santa Catarina sem verba. Cheguei lá e ele cheirava mal. Tinha um banheiro para mais de 70 caras, meu olho encheu de água. Sabem qual foi a resposta dele? ´Sei que está difícil, oro para Deus à noite.Mas na hora em que estou em campo, tudo passa. É o momento mais feliz de minha vida’. O mesmo acontece comigo: quando estou na cozinha, o mundo para”.
Buon appetito.
Cantina C… Que Sabe!
R. Rui Barbosa, 192 – Bela Vista, São Paulo Tel.:: (11) 3251-4597