A emancipação do chef Adriano de Laurentiis
Até o início de 2019, Adriano de Laurentiis executava receitas criadas por outras pessoas, oculto atrás de panelas e protegido dos holofotes por um confortável anonimato. “E eu era bom em ser essa pessoa, realizava meu trabalho muito bem e gostava do que fazia. Só que agora o buraco é mais embaixo”, define o novo prodígio da gastronomia paulistana. Depois de passar por cozinhas renomadas, como Tuju, Maaemo (norueguês, três estrelas Michelin), Manioca e Corrutela, era inevitável que decidisse trilhar seu próprio caminho pela gastronomia. Em novembro do ano passado, ao lado do amigo Guilherme Giraldi – com quem trabalhou no Corrutela –, abriu o Cais, na Vila Madalena, onde peixes e frutos do mar protagonizam um cardápio enxuto e mutante. Menos de três meses depois da inauguração, dois mil clientes já tinham passado por lá, surpreendendo os sócios. “Essas pessoas pagaram para comer a minha comida. Isso ainda é muito inacreditável para mim.”
Culinária livre
Depois de “comer o pão que o diabo amassou” na Noruega – onde chegou a passar semanas limpando a escada do restaurante –, Adriano quase desistiu da gastronomia. Ouviu muitas vezes que era impossível ser chef de cozinha e tratar os funcionários como família. “Cada vez que ouvi isso, questionei se estava no caminho certo. Mas respondia que, quando tivesse oportunidade, faria ascoisas do jeito que achava que deveriam ser feitas.” E está fazendo. No Cais as coisas são feitas com liberdade, mas com muita qualidade. Adriano não é mais refém de um cardápio fixo: quando cansa do processo de execução de um prato, simplesmente deixa de fazê- lo. Se não encontra o peixe no padrão esperado, substitui por polvo no dia. E nada de gritaria na cozinha. “Nós estamos tentando ser um lugar legal. Sem maiores pretensões.”
Como um publicitário foi parar na gastronomia?
Eu sou de Ribeirão Preto e cresci em fazenda. Mudei para São Paulo para estudar publicidade na ESPM [Escola Superior de Propaganda e Marketing], me formei, trabalhei em agência de publicidade por um tempo e depois cansei. Quando morava com os meus pais, tínhamos empregada em casa e nunca cheguei perto do fogão. Quando queria algo, minha mãe deixava pronto. Em São Paulo, morei em uma república com meu irmão e meus primos. E meu irmão vivia à base de pão com queijo. Eu gostava de comer bem, de tomar vinho, assim como a minha mãe. E, para comer bem sem dinheiro, a única opção era fazer. Comecei a comprar livros do Jamie Oliver e a assistir a vídeos [de receitas] no YouTube. Fazia, errava, achava que estava ótimo. Hoje eu olho para trás e penso: “meu Deus, o que eu achava que estava fazendo?”.
E descobriu um talento…
Virei o “amigo que cozinha”. E esse passou a ser o rolê da minha turma de amigos da faculdade. Eles iam em casa, eu cozinhava e, depois, a gente fazia uma festinha. Comecei a deixar a faculdade de lado e focar nisso. Me formei em publicidade como um dos piores alunos da turma. Depois de formado, decidi fazer o que gostava. Entrei na faculdade de gastronomia bem mais velho do que os outros alunos e sentia que precisava correr atrás. Logo no primeiro semestre, consegui um estágio no Tuju e foi a primeira vez que pisei em uma cozinha profissional. Dei muita sorte. Eram três meses de estágio, mas, no segundo mês, eles me efetivaram. Chegava às oito da manhã, trabalhava o dia inteiro, limpando quilos e quilos de peixe e ia para a faculdade à noite, até às 23 horas. Foram dois anos bem pauleira, emagreci dez quilos.
Por que você decidiu ir para a Noruega?
Eu saí do Tuju e, por muita sorte, consegui uma vaga de estágio no Maaemo, três estrelas Michelin, em Oslo. Namorava uma menina que conseguiu a vaga, mas não tinha a documentação e eu tinha. Caí de paraquedas na Noruega, no frio, sozinho. Chegava no restaurante às oito da manhã e saía às duas, três da manhã do dia seguinte. Não tinha vida. Foram três meses infernais. De muito aprendizado, mas em um tipo de trabalho que sou contra, uma cozinha em que as pessoas xingam e gritam o tempo todo. Sofri preconceito por ser brasileiro. Cozinheiro europeu de grande restaurante ainda tem essa mentalidade militarizada. Eles adoram estagiário brasileiro porque trabalha e não abre a boca pra reclamar. Eu fazia tudo o que me diziam para fazer. Passei semanas limpando a escada do restaurante com uma bucha. Conquistei meu espaço, eles me ofereceram uma vaga de cozinheiro e eu rejeitei. Minha sanidade mental não ia aguentar. Eu já estava bem desgastado pela distância de casa e por fazer um trabalho em que não acreditava.
Isso não te causou nenhum trauma com a gastronomia?
Quase desisti várias vezes por conta disso. Vim de outra área com bastante experiência, tive cargo de chefia, estagiários e sempre tratei todos como família. E quando entrei em restaurante, ouvia que isso era impossível. Eu respondia que quando tivesse oportunidade, faria as coisas do jeito que achava que deveria ser feito.
O que fez quando voltou da Noruega?
Fui parar no Manioca, no Shopping Iguatemi. Lá, eu fazia serviço para 500 pessoas. Era uma quantidade de comida que nunca tinha visto na frente. É quantidade com padrão. Então foi ótimo, porque vim de uma escola que atendia 20, 30 pessoas por serviço e, de repente, caí do outro lado da moeda. Saí de lá porque o Cesar [Costa] estava montando o Corrutela. O Gui e eu fizemos parte da primeira equipe. Fui como cozinheiro, virei subchefe, completei um ano. E saí porque o Gui me convidou para fazer um negócio nosso. Ele é um grande pensador de gastronomia e de restauração de modo geral. Só que ele não gosta da cozinha, de se cortar, de se queimar… E eu gosto. Não gosto da violência, mas gosto da adrenalina.
Foi quando decidiram abrir o Cais?
Sim. Foi meio num ato de loucura que criamos a sociedade. Eu não tinha dinheiro, nem de onde tirar. Mas no começo de 2019 começamos a desenhar o Cais, e abrimos em novembro.
A ideia sempre foi abrir uma casa de frutos do mar?
Juntou duas coisas: o Gui gosta muito de comer frutos do mar eeu gosto muito de manipular. No Tuju, grande parte do tempo, trabalhei com peixes e frutos do mar. Na Noruega também e no Corrutela fui contratado, justamente, porque sabia mexer com isso. E acabou virando um dos pontos fortes do restaurante.
Como define a cozinha do Cais?
A grande inspiração são os neo bistrôs parisienses. Pode parecer um pouco pretensioso, mas é como gostamos de fazer. É uma comida que parece descomplicada, mas tem muita técnica por trás. O que fazemos é pegar toda a bagagem técnica que tive dos restaurantes de alta gastronomia e escondê-la dentro do prato. Queremos é que a comida seja gostosa e não assuste as pessoas. Se você come algo e não gosta, que você se sinta à vontade para dizer que aquilo não agradou. Tem lugares em que você come e sente que está errado se não gostar. A ideia do Cais é que seja um lugar onde as pessoas venham para se sentir bem.
Mesmo trabalhando quase tantas horas quanto na Noruega, você não sai do Cais desgastado?
Não. Eu chego às nove horas e vou embora à uma da manhã. E não é uma questão de ser controlador, mas falta braço. Não tenho cozinheiros suficientes para ser um chef que não produz. Uma grande vitória do Cais é o ambiente de trabalho. Mesmo nos dias de folga, o Matheus, que é um dos meus cozinheiros, e eu nos encontramos aqui no restaurante para trabalhar. Gostamos de estar aqui. Às segundas-feiras, depois que a gente fecha, tem uma festa para os funcionários, porque ninguém quer sair. É o oposto daquilo que sempre me disseram. Uma conquista muito grande realizar aquilo que me disseram que eu nunca ia conseguir.
O que é essa tal “charcutaria do mar” que fazem aqui?
A nossa ideia aqui é trabalhar o peixe de uma maneira que ele não é trabalhado em outros lugares. O peixe defumado, por exemplo, nós tratamos como se fosse um prato de carne suína. Pegamos um peixe azul, bem gordo, de carne branquinha, defumamos e curamos como se estivéssemos fazendo um bacon. E acompanhamos com molho de maçã. Nossa defumação é feita a frio, então o peixe nunca passa de 25 graus, por isso, temos um peixe com muito sabor e suculência. Mas não explicamos isso para os clientes, porque não acho que seja necessário. Colocamos o prato na mesa, dizemos qual é o peixe, que é defumado, o molho e os acompanhamentos. Se a pessoa quiser saber mais, ela pergunta. Queremos deixar as pessoas à vontade.
E o clima da casa também ajuda nisso…
Se a gente quisesse fazer um restaurante que fosse só para comer, não teríamos investido em som, iluminação, sofá para que as pessoas se sentissem confortáveis… Eu sou um cozinheiro que não acha que a comida seja a coisa mais importante de um restaurante. Ele tem uma complexidade muito maior que isso. Se você vai a um restaurante, come bem e é mal atendido, você não volta. Se comer médio e for bem atendido, você volta. As pessoas vão porque o lugar é legal. A comida é importante, mas, no fim das contas, é só comida. Eu não vou me estressar porque o ponto do peixe passou um pouco. É legal quando fica perfeito, mas se estiver gostoso já é bom, ninguém vai morrer.
Por que o cardápio do Cais muda tanto?
Tem três grandes motivos. Um é o fornecedor de peixe. Falo diariamente com a peixaria para saber o que chegou e se está do jeito que gosto. Se não tiver peixe no padrão, pedimos polvo e mudamos o cardápio, sem pensar duas vezes. Aí é divertido, eu chego cedo, pego meus livros e tento desenvolver algo legal até o fim do dia. Outra questão é o estoque. É um restaurante minúsculo, que tem três geladeiras, e, às vezes, os produtos acabam. Isso acaba gerando alterações no menu. E o terceiro motivo é que, às vezes, o processo de fazer um prato enche o saco. Em muitos lugares, eu era obrigado a fazer um negócio que odiava porque o menu era aquele. Agora, se eu estou fazendo um negócio que não aguento mais, tenho a liberdade de mudar.
Cais
R. Fidalga, 314 – Vila Madalena – São Paulo
Tel.: 11 3819-6282
Por Mariana Santos
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