Maria Fernanda Cândido: musa inspiradora
Com 23 anos de carreira, Maria Fernanda Cândido sempre atraiu os holofotes para si, seja pela sua beleza estonteante ou pelo seu trabalho impecável na dramaturgia. Mas, ultimamente, ela tem chamado atenção por um outro motivo: sua voz ativa na luta feminista. Sócia-fundadora da Casa do Saber, espaço dedicado a debates e disseminação do conhecimento, Maria Fernanda idealizou o curso O Desafio Feminino para discutir temas como maternidade, sexualidade e o comportamento da mulher na sociedade durante as aulas online dadas pela psicanalista Maria Homem. O feminismo também faz parte da sua rotina dentro de casa. Casada com o francês Petrit Spahira e mãe de dois meninos – Nicholas, 11 anos, e Thomas, 14 – ela costuma abordar o assunto com a família. “Conversamos muito. E meus filhos me fazem perguntas interessantíssimas…”, conta a atriz, que acredita que formar a nova geração com essa consciência é fundamental e, talvez, seja a chave para uma grande mudança.
Você está no ar novamente, com a reprise da novela A Força do Querer. Não sente saudade da televisão?
Sinto saudades sempre. Fazer uma novela é um exercício árduo, desafiador e muito prazeroso.
Mesmo passando a quarentena na França, sua vida profissional continua a todo vapor. Como tem sido essa nova rotina de trabalho?Desde o início de junho tenho feito a moderação dos cursos que marcaram essa fase de transição da Casa do Saber para o mundo digital. No fim de outubro fiz a última das sete aulas do curso O Desafio Feminino, que idealizei e me orgulho muito de ter sido concretizado, dado pela psicanalista Maria Homem. Além disso, tenho participado de leituras online de peças teatrais e tenho celebrado o centenário de Clarice Lispector em leituras e lives.
De onde surgiu a ideia do curso?
A ideia desse curso nasceu da experiência que tive com minhas últimas personagens no cinema, em filmes que ainda serão lançados no Brasil, como o Traidor, de Marco Bellocchio e A Paixão Segundo G.H, de Luiz Fernando Carvalho. Eu diria que sobretudo a personagem G.H, me trouxe uma profunda reflexão sobre a condição feminina através dos tempos, chegando nos dias de hoje. Foi quando voltei de Roma que comecei a trabalhar na criação de um curso que abordasse a existência feminina, suas interseccionalidades e seus desafios. Para isso, acreditei ser necessário entender o percurso do feminino através dos séculos, o ser ou não ser mãe, a relação com o trabalho, sexualidade e afetos. A psicanalista Maria Homem, eu e mais centenas de participantes fizemos uma jornada esclarecedora, instigante e potente.
Você acabou de filmar um longa na Itália. Fale um pouco desse projeto.
Este ano filmei Bastardi a Mano Armata, dirigido por Gabriele Albanesi, em Roma. Começamos a rodar no início de fevereiro, e em 11 de março as filmagens foram interrompidas por causa da pandemia. As cenas que ficaram faltando foram feitas no início de setembro e o filme encontra-se em fase de pós-produção.
Como vê o retorno das artes pós-quarentena? Esse período vai deixar “heranças” positivas, como as apresentações pela internet?
Acredito que sim. O teatro continuará existindo, esse ritual que atravessou milênios sobreviverá a essa pandemia, como já sobreviveu a tantas outras. Já o acontecimento teatral digital, que pode até mesmo ganhar um nome específico, foi uma novidade que permitiu o contato de um número enorme de pessoas com o teatro. A herança, traduzida em palavra, será a acessibilidade. A riqueza cultural, os conteúdos, os autores sendo levados a lugares distantes, de difícil acesso e por preços muito mais acessíveis, a meu ver é mais que positivo: é fantástico.
A quarentena trouxe à tona a questão do papel da mulher em casa. Acha que um dia chegaremos ao patamar de igualdade nos cuidados com os filhos, casa, família…?
Acredito ser possível. A consciência de que uma família é um coletivo e que o grupo deve se ocupar e ter a responsabilidade com os cuidados vem se fortalecendo a cada dia.
Qual o posicionamento do Petrit sobre tudo isso? Ele é um homem feminista ou teve aquele momento em que tiveram de sentar para esclarecer alguns pontos?
Ele não é feminista. Temos que esclarecer muitos pontos… Perguntei a ele esses dias se ele era um machista em desconstrução, e ele me respondeu que não, que é um machista em reconstrução, em aprimoração.
Você é uma mulher com uma beleza ímpar e imagino que tenha sido muito cobrada, ao longo da carreira, em manter seu visual. Acha que esse tipo de cobrança com a imagem da mulher é fruto do mundo machista?
Podemos pensar que essas exigências do feminino são as grandes armadilhas das idealizações que colocaram a mulher em um lugar objetificado. São os ideais de beleza, magreza, juventude, além, é claro, dos ideais de comportamento e produção. São as projeções dos valores da nossa cultura, que é uma cultura machista patriarcal. O problema do ideal é pressupor sempre um contra ideal. E essas duas posições serão sempre reféns de um mecanismo de dominação muito ardiloso.
Há quem pense que ser feminista é sinônimo de abrir mão da vaidade, da feminilidade… Por que acha que ainda existe essa confusão?
Seria talvez uma tentativa de se apropriar dos ideais masculinos? A meu ver seria mais adequado pensar e lutar por uma atribuição mais equilibrada dos valores de todos. Mulheres, homens, negros, homossexuais, trans, etc…
E, para finalizar, qual o papel do governo nessa luta?
A ordenação patriarcal do mundo é milenar. O atual governo é um representante do sistema patriarcal que encontra suporte na própria sociedade, como mostram as pesquisas. É um sistema que opera no paradigma fálico, de competição, praticando uma espécie de darwinismo social que faz uma valoração moralizante dos mais fortes e mais fracos. Acho difícil este governo deixar de lado essa concepção competitiva para pensar numa episteme de cooperação, que poderia ser inclusive fonte de maior produção de capital.