Leona Cavalli leva a arte para as pessoas como uma ferramenta de reflexão
Leona Cavalli é uma das mais significativas atrizes brasileiras. O público se recorda dela pelos sucessos recentes, como a personagem Gladys, da novela Terra e Paixão, ou de papéis marcantes, como o da prostituta Zarolha na reedição da novela Gabriela (2012) ou da vilã Glauce na novela Amor à Vida (2013). No cinema ela teve atuações memoráveis, como a cabeleireira Dalva no filme Um Céu de Estrelas (1996) ou a garçonete impagável no filme Amarelo Manga, que acabou lhe valendo o Prêmio Guarani de Melhor Atriz Coadjuvante. Fez ainda filmes como Carandiru e Olga, dentre outros. Mas Leona é primordialmente uma atriz de teatro. Foi onde sua paixão pela dramarturgia começou. Aos seis anos ela fez uma peça no colégio da pequena Rosário do Sul, uma cidade na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai, e decidiu que esta seria a sua vida. E, determinada, correu atrás. Tem um currículo incrível de participações em diversos espetáculos e faturou diversos prêmios. É ganhadora do Prêmio Shell de Melhor Atriz em 2000 ao interpretar Geni na peça Toda Nudez Será Castigada, um clássico de Nelson Rodrigues. Também conquistou um APCA, dois Qualidade Brasil e um Guarani, além de ter recebido indicações para três prêmios Grande Otelo. Leona fez outras coisas interessantes, incluindo até um ensaio nu para a edição de Outubro de 2012 da revista Playboy aos 42 anos de idade. Hoje, aos 54 anos e mais de 40 de carreira, ela assumiu uma nova fase atuando como atriz e diretora e está em cartaz em São Paulo com a peça O Elogio da Loucura, no Teatro J. Safra. No Rio, no Teatro dos Quatro, ela brilha na peça Ser Artista, interpretando grandes divas do teatro, cinema e televisão brasileiros. Em junho, estreia no teatro do Banco do Brasil, em São Paulo, a peça Fausto, de Zé Celso Martinez Corrêa, no papel de Mefistófeles, e no segundo semestre, vai viajar pelo Brasil todo com O Elogio da Loucura em curtas temporadas.
Você descobriu que queria ser atriz com apenas seis anos de idade e trilhou uma carreira incrível. Isso é um exemplo não só artístico como também de determinação?
Na primeira vez que pisei em um palco eu fiquei tão fascinada que percebi que queria fazer aquilo na minha vida. Ser outra pessoa além de mim mesma. Eu sempre tive necessidade de fazer arte e na minha cidade não tinha nem cinema nem teatro. Foi muita coragem, ousadia e, sim, determinação, pois saí de lá para estudar em Porto Alegre depois me mudei para São Paulo e para o Rio porque acreditei neste sonho.
Uma menina de uma cidade do interior ir estudar arte na capital nos anos 1980 foi muito mais ousado para época do que hoje?
Minha família em princípio não queria, mas depois me apoiou. Eu sempre fui muito determinada. Acabei fazendo direito e artes cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul ao mesmo tempo. Mas no segundo ano de direito eu decidi que queria ser atriz e me mudei para São Paulo. Comecei num grupo amador chamado Dragão 7 e depois entrei no Oficina para trabalhar com o Zé Celso. A força criativa do teatro sempre existiu e sempre vai existir. Na minha visão, um ator precisa ir fundo, abraçar a profissão como se fosse uma missão.
Dos palcos você passou para o cinema. Como ele entrou na sua vida?
A diretora Tata Amaral assistiu a minha peça Hamlet e me convidou para o filme dela, “Um Céu de Estrelas”, e acabou dando tudo certo em um momento de retomada do cinema brasileiro. Aprendi a fazer cinema na prática, mas foi importantíssimo para mim. É muito diferente atuar no teatro, na televisão e no cinema. São coisas tecnicamente muito diferentes. Mas no teatro não tem edição. Você tem que fazer a cena absolutamente concentrada. Eu me entrego totalmente.
E a TV?
É um caminho que te dá mais visibilidade, mas é totalmente diferente. Como é para uma atriz de palcos se adaptar ao formato? As pessoas não tem ideia do que é trabalhar em televisão. Você precisa gravar 20 a 30 cenas de uma vez. A novela é uma obra aberta. A personagem vai se modificando, o autor vai dando contornos diferentes conforme a novela vai caminhando e você tem que estar preparada para tudo. Por outro lado, a novela realmente chega a um público muito maior. Mas teatro, TV e cinema, cada um tem a sua magia, o seu espaço e a sua beleza.
Ultimamente, por várias razões, o teatro anda mais elitizado. Isso te incomoda?
Vivemos em um mundo complicado em que tudo é muito rápido. Mas o teatro permite um contato mais íntimo do ator com o seu público. O teatro sempre foi para pouca gente e ele é para ser assim mesmo: fazer a pessoa refletir, se emocionar e se impactar com o conteúdo da peça. Tecnicamente, o teatro precisa muito mais do ser humano. Já a TV e o cinema tem a sua disposição muitos recursos técnicos para fazer a cena e passar a sua mensagem. Mas cada um tem o seu valor. Atualmente, como diretora, precisei ir para o outro lado do balcão, ou seja, viabilizar um espetáculo como um todo. É um trabalho que envolve centenas de pessoas. Não é fácil.
O brasileiro gosta de teatro, novela, cinema, música… Somos um país muito voltado para a cultura da arte e dos espetáculos, não?
A criatividade sempre foi o nosso maior bem. O Brasil é um país muito criativo, com muitas histórias e uma veia artística incrível. A arte é vital para o nosso país. Entretanto precisamos valorizar mais acultura e a arte. Ninguém consegue ser feliz sem arte. Sem pensar, sem criar, sem refletir e sem se expressar. Precisamos revalorizar os nossos conceitos. Este processo de desumanização que estamos vivendo é muito perigoso. O ser humano precisa voltar a ter valor, ainda mais com o surgimento da inteligência artificial. A cultura está sendo dominada por poucas pessoas. Está difícil fazer arte no Brasil. Precisamos nos unir mais. Nós não somos um algoritmo. Somos pessoas. Precisamos deixar de ser um número e voltarmos a ter um valor como seres humanos. As pessoas não podem se acomodar e aceitar a desumanização e o efeito mercadoria. Somos muito melhores do que isso.
Além de uma grande atriz você é uma mulher forte, que sempre acreditou no seu potencial, trabalhou e CAPA construiu uma trajetória de sucesso. Um exemplo inspirador para muitas mulheres?
Eu sempre quis ser o que eu sou. Nunca tive intenção nem vontade de ser uma inspiração ou um espelho para as pessoas. Eu não gosto de rótulos porque eles são sempre menores, mas acredito que a mulher ou qualquer pessoa que têm uma força de vontade e determinação têm o seu valor. A liberdade de ser o que você é precisa sempre estar em primeiro lugar. Existem muitos movimentos de empoderamento feminino, de aceitação das diferenças, inclusive com uma maior participação das mulheres na política. A mulher se valorizou, mas ainda existem muitos homens e mulheres que continuam pensando na mulher com uma mercadoria. Isso sempre existiu. O que precisamos é de educação. Só com a educação as pessoas vão conseguir ter meios e pensamento crítico para mudar isso, inclusive o espírito criativo vem com a educação.
Como atriz, como você enxerga obsessão das pessoas em estar em evidência nas mídias sociais?
As mídias sociais deram um impulso muito grande ao exibicionismo. Isso atinge todas as camadas da população. Eu não tive filhos, mas acho que é obrigação de um pai e de uma mãe cuidar da educação dos seus filhos para que eles não deixem de valorizar a própria educação, o conteúdo, a cultura e a arte. Desde a Grécia é assim: esportes e artes como base da sociedade. Não precisamos de uma sociedade doente e o teatro pode ajudar as pessoas a acordar.
Você acredita em finais felizes?
Eu sou otimista. Pessimismo leva à destruição. Estamos vivendo um processo de desconstrução e acredito que a gente precisa se unir para construir uma sociedade melhor. Essa peça que estou fazendo, “O Elogio da Loucura”, foi escrita em 1508 pelo Erasmo de Rotterdam que disseca a sociedade. A loucura como parte da condição humana, que tem na arte e na liberdade um poder de transformação. Nós mantivemos quase que 90% do texto original. É um texto atualíssimo. A loucura do mundo é desde sempre a de guerras, de tiranias, de hipocrisias e da supressão das liberdades. Entretanto a loucura criativa é necessária para a gente não enlouquecer realmente. É uma coisa muito contemporânea e necessária para nossa raça. Eu sempre acredito no final feliz. Acho, inclusive, que estamos no começo de um processo de construção de uma nova maneira de ver o homem. A liberdade, a arte, a relação entre as pessoas são muito importantes. Por isso existe a necessidade de nos unirmos por um futuro melhor, com mais amor com mais liberdade, com mais paixão, com mais arte.
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POR Leonardo Millen
FOTOS: Divulgação/Waldir Evora