Leandro Karnal: pensador contemporâneo

Historiador, professor da Unicamp, escritor, palestrante, youtuber e influenciador digital. Com mais de 2 milhões de seguidores nas redes sociais, Leandro Karnal filosofa sobre qualquer assunto com os mais diversos públicos. E sempre de maneira que prende a atenção de quem o escuta. Nesta entrevista exclusiva, esse pensador contemporâneo fala sobre os impactos do coronavírus na nossa sociedade.
Você foi um dos tantos brasileiros diagnosticados com o coronavírus. Como foi quando recebeu o diagnóstico? Bateu aquela angústia, teve medo de morrer?
Temos uma doença com manifestações muito variadas. Eu tive a felicidade de apresentar um caso leve. Não fosse a anosmia e a disgeusia, não saberia que tive Covid-19. Fui fazer exame por causa da falta de olfato e paladar, algo inédito para mim. Nunca tive medo de morrer até hoje, nem com problemas graves aéreos ou de automóvel. Tenho como desafio a vida, nunca a morte. Morrer é fácil. Viver é um desafio.
Com uma segunda onda da pandemia chegando, até que ponto o emocional das pessoas poderá suportar uma demora tão prolongada de volta à normalidade, seja ela qual for?
A ânsia de retomar a sociabilidade (e coisas que supúnhamos ter) deve pressionar cada vez mais, ao lado das demandas econômicas. Os sintomas da impaciência estão no ar. Muitos começaram bem seu isolamento. Depois, foram diminuindo a paciência. Não temos experiência histórica com interdições prolongadas, como racionamentos na Europa das guerras.
Acredita que a grande dificuldade do ser humano é a de não saber lidar com o desconhecido? Por isso tanta gente deseja voltar à rotina que tinha antes da pandemia?
Temos enorme dificuldade com o desconhecido e com interferências na rotina. Temos algo estranho: as pessoas que nunca visitavam a tia idosa no interior estão, agora, ansiosas pela liberdade de continuar não visitando a tia por vontade própria. Não gostamos de imperativos e restrições sobre nós. Nossa rebeldia é fraca contra a injustiça e forte em defesa da nossa liberdade individual…
A corrida pelas vacinas, além dos imensos interesses econômicos em jogo, vem se tornando também um embate político e ideológico. Nessa nova guerra fria, onde fica a ciência?
Como em toda Guerra Fria, a ciência é beneficiada e limitada pelo jogo político. Nas guerras, em geral, há investimentos em grandes projetos científicos: os foguetes V-1 e V-2 da Segunda Guerra, o avião a jato, o avanço na corrida espacial, etc. Tudo deriva de um jogo político e de interesses. A ciência ganha enormes verbas em alguns setores durante os conflitos, mas os resultados devem ser apropriados pelos Estados e empresas. Com o tempo, os benefícios podem ser ampliados. O que menos importa no jogo entre os poderes políticos e econômicos é o bem-estar das pessoas.
Do ponto de vista ético, como encara o pragmatismo de muitos políticos e empresários que defendem a volta plena à atividade econômica, mesmo sabendo de suas consequências? Ou essas consequências não os atingem?
No México, a filósofa Sayak Valencia tem aproximado o pensamento empresarial e do narcotráfico. Em ambos, com frequência, o que importa é o domínio do mercado e as pessoas podem morrer. Existe uma solene indiferença com a vida humana, pois o resultado é o único fator que conta. Mesmo que possamos discordar da posição da pensadora, a vida humana está na propaganda de Estados e de empresas, não na estratégia de ações. Não existe uma escala clara de valores, por exemplo: melhor estar em crise financeira do que morto. Quase sempre, quem defende a plena abertura é uma pessoa que estará bem segura no seu isolamento. Quase sempre, é a coragem do general que manda as tropas avançarem diante do fogo aberto da metralhadora e fica seguro tomando seu chá no quartel-general.
O que menos importa no jogo entre os poderes políticos e econômicos é o bem-estar das pessoas.
Movimentos de desobediência civil começam a surgir contra as restrições impostas para combater a pandemia, como os aglomerados nas praias e bares Brasil afora. Até onde o Estado pode ir para defender o bem-estar do conjunto da sociedade? E até onde o cidadão, em nome de sua liberdade, pode colocar em risco a vida dos outros cidadãos?
Nunca ficou muito claro o quanto permitimos que a ideia do bem público esteja nas nossas vidas. A característica cultural mais histórica da nossa sociedade é o bem individual se sobrepondo ao coletivo. Isso vai da política ao isolamento. O que chamamos de corrupção é, quase sempre, a privatização do bem público. O que chamamos de nepotismo também. Sergio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, destacou como para nós a questão familiar se impõe sobre a racionalidade abstrata do bem maior. Mais recentemente, João Luís Fragoso fez o mesmo no lindo texto Homens de Grossa Aventura ao analisar a elite fluminense no final do período colonial e início da independência. Relações de compadrio são mais importantes do que vínculos de cidadão.
As pessoas que frequentam os locais lotados estão desafiando não apenas o Estado, mas desafiando também o risco da própria morte, em nome do prazer. Como vê essa questão?
Meu primeiro impulso (que reprimo logo) é pensar: “deixem Darwin agir e a evolução seguir seu rumo. Se alguém não tem inteligência para perceber a gravidade de algumas situações, é melhor que, como todo animal inapto da savana, seja tragado pela cadeia alimentar”. Este pensamento amargo me ocorre, mas eu não o deixo se desenvolver. Nem sei se é em nome do prazer ou do gosto adolescente pela transgressão. Precisamos de maior consenso com boas campanhas educativas e maior coerção. Precisamos de gente racional instruindo pessoas.
Acha que a internet e as mídias sociais ajudam a fomentar esse tipo de comportamento? Afinal, muita gente se sente obrigada a parecer feliz e de bem com a vida em seus perfis…
Se parecer feliz é estar aglomerado em um bar com risco de vida, é um prazer “kamikaze” estranho. O grande prazer é a vida. Já há possibilidade de serem abertas algumas formas de lazer. Fui a um concerto, por exemplo. Um terço da sala preenchida, máscaras obrigatórias, distanciamento entre as pessoas, ordem de saída respeitada. Isso parece racional. Da minha parte, é muito prazeroso ver que a lógica se impõe ao irracionalismo.
Ainda sobre os comportamentos que afloram no ambiente digital, está o ódio, a famosa cultura do “cancelamento”, como dizem hoje em dia. Por que a sensação de anonimato desperta essa fúria em algumas pessoas?
Porque é o poder do ressentido, o grito do impotente e o gemido de quem é inexpressivo. O anonimato desperta covardias. O debate é bom, sempre. O ataque anônimo ou a “oclocracia” (um poder baseado no suposto comando das massas) é uma forma moderna de perversão da democracia. A internet criou um plebiscito permanente que torna medidas de médio e de longo prazo muito desafiadoras. Importa apenas o ibope do momento.
O que acha da polarização que está tomando conta do mundo, movida, principalmente, pelas posições políticas?
Sinal de emburrecimento claro e simples. O debate, como eu disse antes, é bom. A polarização não é o debate, é o ódio raso vomitando insultos ou o uso de robôs automáticos. A polarização nada acrescenta de densidade a questões delicadas. Temos temas muito importantes e que geram debates justos, aborto, por exemplo. A polarização é imbecil, não ilumina o drama e só mostra que, em nome da vida, muita gente mataria com prazer.
Lulu Santos tem uma música que fala em gente fina, elegante e sincera. Quem, nos dias de hoje, é este tipo de pessoa, na sua opinião?
Fina é quem apresenta etiqueta, ou seja, a pequena ética. Pessoa elegante nota o espaço das outras pessoas, sente-se segura a ponto de não precisar pisar em ninguém. Gente sincera é a pessoa que expressa sua ideia sem grosseria e argumenta mais do que adjetiva. Gente educada, hoje, não é quem usa lavanda ou come com o talher correto; todavia é quem entende que a regra de ouro de toda etiqueta é nunca constranger alguém, sempre ter empatia e aceitar a diversidade. O novo bárbaro pode saber tudo de guardanapo e nada sobre o outro ser humano. Gente feliz não “torra”. A pessoa fina, elegante e sincera é a pessoa feliz que sabe que existem outras pessoas no mundo e que a tolerância ativa é o único caminho que nos separa da imbecilidade vaidosa. Ou dialogamos de forma civilizada ou desapareceremos em um mar de gabinetes de ódio servindo a interesses privados. Espero que vençam as pessoas “finas” de verdade.