Kobra: o maior e mais famoso muralista brasileiro
Do Jardim Martinica, um bairro pobre da zona sul paulistana, à Personalidade do Ano de Nova York (em 2018, pelo guia cultural Time Out). Em qualquer lugar do mundo, o muro é o ponto de partida de Kobra para revelar sua expressão artística ao mundo. Três mil obras já foram produzidas. Mesmo com a pandemia, período no qual o artista se isolou. Nessa fase, a “arte com propósito” aflorou na mente e no olhar de Kobra, que produziu importantes obras recentemente, como o mural Coração Santista, em Santos, em homenagem ao rei do futebol, no ano em que Pelé completa 80 anos.
Como podemos defini-lo? Muralista, grafiteiro, artista de rua…
Muralista, embora não tenha problema nenhum de que me chamem de grafiteiro. Eu já transitei por vários universos – pichação, grafite, mural e street art de forma geral. Todos eles utilizam a cidade como suporte. Mas tanto a pichação como o grafite são feitos de forma ilegal, sem as permissões.
O que mudou na sua mentalidade e na sua proposta dos tempos em que era um adolescente pichador aos dias atuais, como um dos mais admirados artistas de rua do mundo?
Eu acredito que a informação, a educação e a cultura. Devido à minha origem, eu tive um pouco mais de dificuldade para ter acesso a algumas informações. Mas isso não era uma prisão. Eu tinha condições de quebrar essa barreira e me esforçar para aprender. Completei agora 30 anos de trajetória. A vida é assim. A gente tem sempre que buscar, por mais que eu seja um artista autodidata, conhecimento. Temos que buscar aprender, evoluir. E eu tenho feito isso até os dias de hoje. A arte está em constante evolução, em constante mudança. Movimentos artísticos que de tempos em tempos se modificam.
Como a pandemia impactou seu olhar? Vi comentários de que você está repensando seu processo criativo.
Eu aprendi a trabalhar com dificuldades. A minha formação como artista já é uma formação atípica. Quando você vem da periferia, você tem que ser 10, 20 vezes mais persistente nos seus objetivos. A pandemia veio justamente no momento em que estava indo muito bem, com mais de 40 convites internacionais. Tudo isso foi paralisado, datas foram trocadas. É um baque muito forte. Como é necessário adaptar-se ao momento, percebi que, além das mensagens impressas no meu trabalho, é possível fazer arte com propósito. E em algumas das obras que desenvolvi durante a pandemia foi possível auxiliar mais de 20 mil moradores de rua de São Paulo. Pudemos ainda fazer uma campanha que ajudou pessoas no Líbano. A arte acaba tendo esse papel e a pandemia me mostrou isso. E isso acaba tendo uma conexão importante com o instituto que estou criando agora.
Como a pandemia impactou sua rotina? Trabalhou menos e repensou mais?
Eu me isolei por um problema de saúde. Estive pior, estive melhor, com momentos complexos, com problema respiratório, problema no pulmão. Achei que era Covid, mas não era. Acabei realizando alguns trabalhos. Pude fazer um mural que gostei muito do Ayrton Senna no grid de largada em Interlagos. Fiz um mural na escola de Suzano onde aconteceu o massacre. Fiz a série da Coexistência onde ajudamos moradores de rua. Fiz uma obra sobre a violência contra os negros, daquele caso do George Floyd nos Estados Unidos, pedindo a paz. Fiz um painel de 800 metros quadrados em Santos. Eu sou muito hiperativo, estou sempre produzindo muita coisa. Mesmo com essa paralisia momentânea, ainda consegui colocar alguns projetos em prática. Consegui me movimentar, o que é importante, já que em alguns momentos estava totalmente paralisado, deitado no sofá, ansioso, depressivo, passando mal. Fui três vezes para o Pronto-Socorro durante a pandemia. Mas, graças a Deus, estou me recuperando. Com fé e a arte também. A arte é um escape, um livramento, a esperança em dias melhores.
São dezenas de convites internacionais para viagens em nome da sua arte. Ver o mundo com os próprios olhos te ajuda a se expressar melhor?
Existem os museus, as galerias e o mundo. O mundo é uma galeria de arte a céu aberto se você puder contemplá-lo com cuidado, observá-lo, admirá-lo com a capacidade de respeitar as culturas, os diferentes talentos, religiões e tradições. Em cada cantinho do mundo tem um pouquinho de arte, em cada pedacinho tem algo que a gente pode sempre aprender com a natureza e as criações de Deus. Seja num lugar nobre, num lugar simples, num local super humilde. Independentemente da raça e da religião, o mundo tem muito a agregar. Poder viajar e apreciar tudo isso, respeitando as condições que cada país impõe e também as decisões culturais e religiosas das pessoas. Tudo isso acrescenta muito valor na minha vida como ser humano e impulsiona a utilizar meu trabalho em favor da paz.
Quantos murais você já assinou pelo mundo? E qual sua programação para os próximos meses?
Tenho um acervo com mais de 3 mil fotos das obras que já realizei desde 1987. Continuo numa produção alta. Tenho muitos projetos, planos. Acho que vou precisar de mais algumas vidas – e paredes – para concluir tudo que penso. São Paulo precisará ter muita paciência comigo… Vou continuar pintando, utilizando as ruas como galeria de arte, as cidades como meu ateliê. Tenho projetos agora em San Marino, com um mural de cerca de 3 mil metros. Tenho a fachada do WTC em Nova York. Tenho o projeto de um livro, de um filme, de uma exposição em São Paulo. Estou com bastante coisa. Ainda quero retomar os convites para todos esses países que foram paralisados durante a pandemia. Meu instituto é um projeto que está no meu coração há muitos anos e que será transformador na vida de muitas e muitas famílias e pessoas através da arte que transforma as vidas. Art for change, arte para transformar, que vai ser o Instituto Cobra. Todos esses são projetos para um futuro próximo.
Qual trabalho considera o mais representativo?
Hoje, pra mim, a pintura se transformou em secundária, por incrível que pareça. O mais importante não é pintar. Pintar é uma técnica, um método. O mais importante é o que vai ser pintado. Todo muro em branco me traz um novo desafio e uma grande responsabilidade, já que se trata de uma arte com acesso a todos, que estará nas ruas, que será vista por pessoas que pensam diferente. Eu procuro respeitar isso, entender o ambiente público, entender que há idosos, crianças, pessoas de diferentes religiões. Tem muita coisa envolvida na cidade. A arte tem que se assentar muito bem ali com a arquitetura, o paisagismo, as cores da cidade. Pode ser na favela, em Piccadilly Circus, na Times Square, no lugar mais caro ou no mais pobre. Pra mim, todas as obras são importantes, todas têm o mesmo valor. Eu sempre aprendo com elas, elas sempre me trazem conhecimento. Quando alguém for olhar para o meu trabalho, procure olhar além das cores. Procure olhar o coração, a alma, a emoção que foi colocada ali.
O mural de Santos foi seu último de 2020 ou devemos esperar outras obras em dezembro?
O mural de Santos foi o trabalho mais recente, mas já estou começando outro. E o que eu estou começando agora é um trabalho que de certa forma contempla um pouco da fé que tenho, da fé em Deus. Vou falar do resgate de Deus em relação à humanidade, com seu valores e princípios. Vou deixar uma leitura aberta desse trabalho para que cada religião, pessoa e crença entenda ali essa mensagem que eu quero deixar do resgate de Deus, do resgate em relação à vida das pessoas. Muitas vezes as pessoas estão aí tristes, deprimidas, ansiosas, nas drogas, no crime, na violência. Pra mim Deus significa a transformação de tudo isso para o lado bom e positivo. E o próximo mural vai trazer essa informação. Eu estou agora começando a trabalhar nele. O nome do mural já é O Resgate.
Por Françoise Terzian
Fotos: Divulgação