Jotabê Medeiros: o rei das biografias
Nascido em 1962, na Paraíba, o repórter e crítico musical Jotabê Medeiros, em três décadas de profissão, escreveu sobre quase todas as bandas e cobriu inúmeros megafestivais e turnês dos expoentes do cenário internacional no Brasil. E por uma dessas surpresas do destino acabou se tornando um tipo diferente de biógrafo de grandes cantores. É autor dos livros Belchior: apenas um rapaz latino-americano, de Raul Seixas: não diga que a canção está perdida e acaba de lançar, talvez, sua obra-prima: Roberto Carlos: por isso essa voz tamanha,
os três pela editora Todavia. Uma biografia não autorizada do Rei Roberto Carlos não foi tarefa fácil. E o resultado é um presente para os fãs e para os brasileiros. Confira:
Artistas como o Roberto produzem histórias verdadeiras e fantasiosas. Como faz para chegar ao que realmente aconteceu?
O melhor caminho é saber primeiro quem é, de fato, esse cara. Sempre tenho como guia voltar ao momento em que ele ainda não era um astro. Assim você não tem a máscara. A partir disso você pode conversar com as testemunhas e saber o que realmente aconteceu. Ele foi da turma da Rua do Matoso, na Tijuca, no Rio de Janeiro, que reunia Jorge Ben, Tim Maia e Erasmo Carlos. Quase todos os músicos que começaram a tocar com o Roberto estão vivos. Eles foram fundamentais para saber quem era o Roberto na época em que estava tentando encontrar seu caminho.
Tem uma história que diz que o Roberto introduziu o rock no Brasil. Isso é verdade?
Não. Existiram outros artistas antes dele, como o Sérgio Murilo, Carlos Gonzaga…, mas o fato é que ele acionou, deu visibilidade, fez a versão brasileira do rock. Ele e o Erasmo criaram o rock brasileiro. Antes, o rock vivia de versões.
Quando o Roberto começou a gravar discos?
Naquela época, as gravadoras não tinham interesse na cena brasileira de música jovem. Mas conforme o Roberto apareceu, despertou o interesse das gravadoras na década de 1960. Teve também a sorte de ser convidado a apresentar um programa de TV. O programa Jovem Guarda estreou em 1965, na Record, e transformou essa música jovem em um fenômeno impressionante no Brasil e no exterior.
O Roberto virou um astro nacional.
A Jovem Guarda falava para as grandes plateias das periferias do Brasil. A força foi tamanha que atingiu também as classes mais favorecidas. As filhas dos generais adoravam a Jovem Guarda! É importante dizer que ele tinha consciência de que precisava ser um representante dos jovens. Então ele bolava as próprias roupas, vivia andando nos “carangos envenenados”, potentes e velozes, e gostava de “mil garotas”! Isso para a juventude era fascinante! O Roberto foi o precursor do marketing no meio musical. Ele criou até uma linha de produtos Jovem Guarda, com botinhas, casacos, calças jeans… Isso em 1965!
Essa linha fashion fez sucesso?
Muito! Eles criaram uma outra linha, a Tremendão. Era baseada no apelido que cada um da turma do Roberto ganhou do Carlito Maia quando criaram o programa da TV. O Roberto era o Brasa, a Wanderléia era a Ternurinha e o Erasmo era o Tremendão. Com a explosão da Jovem Guarda, começaram a surgir outros artistas como Jerry Adriani, Wanderley Cardoso, Martinha, Ronnie Von… Aliás, o Ronnie Von foi um dos poucos que vieram da burguesia.
O Jorge Ben e o Tim Maia não eram da mesma turma?
O Roberto puxou o Jorge Ben para a Jovem Guarda. Mas o Tim Maia, em 1958, se mandou para os Estados Unidos e só voltou em 1967. O Tim teve esse lapso de produção, mas que vai ser fundamental para definir o que ele iria ser no futuro. Ele entra em contato com a black music americana e traz para essa nova fase. Ele e o Toni Tornado. Daí o Roberto incorpora elementos da black music nos discos de 69, 70 e 71. Há várias canções do Roberto com aqueles coros gospel e é evidente que o Tim Maia tem influência nisso.
Essa história da briga do Tim com o Roberto, quando ele voltou dos Estados Unidos, aconteceu ou não?
Aconteceu. O problema é que o Tim é a maior fonte dessa história. E o Tim sempre exagerava! Mas eles brigaram também antes, em 1958, quando tinham uma banda chamada Sputnik. O Roberto era a segunda voz e quando eles foram ao programa de TV do Carlos Imperial o Roberto pediu uma chance solo para ele. Ou seja, ele manifestou o desejo de sair da banda que estava começando. O Tim Maia considerou isso uma traição imperdoável. A partir dali eles se estranharam. O Tim nunca perdoou o Roberto. E espalhou que o Roberto não o tinha deixado cantar na Jovem Guarda. Mas o Tim passou um tempo preso exatamente nessa época.
A virada romântica do Roberto foi pensada?
Foi totalmente pensada. O Roberto já vinha, desde a Jovem Guarda, compondo baladas mais românticas. Mas ele se casou em 1967, largou a Jovem Guarda e a trupe que o acompanhava. Manteve apenas o Erasmo ao seu lado. Entrou em um período muito criativo, arriscando muitas coisas até 1971. Daí ele começa a trabalhar essa faceta romântica. Os shows dele passaram a ser dirigidos pelo Miele e pelo Boscoli, com orquestra, arranjos grandiloquentes, quase como conhecemos hoje. Com isso, o Roberto ultrapassou a venda de um milhão de discos. Foi a independência financeira dele. Isso aconteceu em 1977. Em 1978 ele bate a casa dos dois milhões. Daí a carreira dele não teve mais como voltar ao ponto que era. Ele foi empurrado para o destino de ser um cantor das multidões.
E a fase do cinema? Ele gostou de ser um astro também das telonas?
Sim. O cinema nos anos 50, 60 fascinavam a juventude. Filmes como Sementes da Violência, de 1955, os filmes do James Dean e outros eram associados à música e à juventude. Até que o sucesso dos Beatles no cinema com Os Reis do Iê, Iê, Iê, em 1964, fez com que ele resolvesse arriscar. Ele encontrou um parceiro, o Roberto Farias, um grande cineasta, que dirigiu os três filmes dele. Um deles foi rodado em diversas capitais do mundo, como se fosse um James Bond. Eram superproduções para a época. Mas teve retorno. Além do sucesso de bilheteria, o cinema foi um veículo importante porque ele desenvolveu uma forte associação com a imagem. Ele é muito midiático.
O Roberto gosta da fama?
Ele sempre gostou. Desde menino, em Cachoeiro de Itapemirim, ele cuidava do visual, da sua apresentação. Ele sempre cultivou esse lado até uma certa altura, quando foi ficando neurótico e desenvolveu TOC, que despertou nele aversão por certas coisas. Isso deixou o Roberto muito mais fechado, encastelado. Até o ponto em que ele vive impenetrável na sua torre na Urca, no Rio de Janeiro. O Roberto lidou desde muito cedo com a idolatria, que pode ser o amor absoluto de um fã ou o ódio decorrente da loucura que isso gera.
Você o conhece pessoalmente desde quando?
A primeira vez ele me recebeu foi em um hotel no final dos anos 80. Desde então, só faz uma coletiva de imprensa anual. E essa coletiva é extremamente organizada. Quem vai ser convidado, onde sentam as pessoas, como vai ser a aproximação dele. Ele não é um cara acessível a qualquer veículo.
O Roberto, provavelmente, sabia que você estava fazendo esse livro. Como ele reagiu?
As biografias que faço não estão condicionadas à aprovação do biografado. É evidente que a colaboração dele seria bem-vinda. Para não trazer nenhum constrangimento a alguns personagens-chave, deixei para consultá-los no final. Daí, se eles topassem falar, eu reformularia trechos do livro. Depois que o livro ficou pronto, liguei para a assessoria do Roberto, contei sobre a biografia e pedi para falar com ele. Demorou um pouco, cobrei de novo. Eles me disseram que o Roberto recebeu meu pedido, mas ainda não tinha respondido. Esperei mais um pouco e cobrei de novo e não obtive reposta. Daí o livro precisava ir para a gráfica porque tinha a efeméride do aniversário de 80 anos do Roberto. E como não estava condicionado à aprovação dele, editamos o livro.
Se ele visse antes, talvez quisesse mudar alguma coisa?
Não submeteria de jeito nenhum à aprovação dele. Ele poderia querer tirar coisas que estão muito bem equacionadas, que independem do testemunho dele, pois estão embasadas em depoimentos de muitas testemunhas. É evidente que a versão dos fatos do Roberto é interessante. Mas é a versão dele. A versão das pessoas que viram os passos dele na carreira e das bandas que tocaram com ele, por exemplo, são tão importantes quanto a dele.
No livro, você fala do episódio de ele ter perdido a perna?
Claro! Eu não evitei nenhum tema da trajetória dele. Especialmente esse, que foi muito impactante, não só na vida como na forma como ele desenvolveu a carreira e as relações pessoais com um senso mais profundo de lealdade. Roberto foi marcado por essa tragédia, aos seis anos. O problema é que não tem mais uma testemunha viva. O rapaz que o socorreu já morreu, os dois médicos, um dos irmãos também, os outros não falam a respeito. Os pais já morreram. Se você vai em Cachoeiro de Itapemirim, todo mundo sabe de alguma coisa, mas são histórias sem embasamento nenhum. Seria mais simples se ele mesmo contasse o episódio porque ia derrubar um milhão de versões.
Pode-se dizer que o livro é uma grande reportagem sobre a carreira do Roberto?
O princípio básico é o jornalismo. O gênero biográfico só se afirma se ele encontrar um ritmo narrativo porque ele é diferente dos outros formatos. A vida do Roberto tem emoção, se cruza com os acontecimentos do país, com a vida das outras pessoas… E ainda tem os amigos, os músicos, os agentes, as namoradas, os filhos, os parentes. Quando aproximo todas essas coisas, preciso achar uma narrativa. Senão vira um “verbetão”. Um tipo de biografia fria demais, chata, que não consegue enxergar a leveza da vida humana, que é cheia de contradições, de falhas reveladoras.
O seu olhar também influencia o modo de apresentar essa narrativa?
Sim. Por eu ser um jornalista que cobria festivais por dias, desenvolvi esse olhar de atenção aos mínimos detalhes. Tento extrair das pessoas não só o declaratório, mas a descrição das minúcias. Isso enriquece a narrativa. Tem uma cena que me foi descrita que conta quando o Roberto foi recusado por uma das gravadora que ele visitou com o Carlos Imperial. O diretor da gravadora dispensou ele. Daí eles e o Eduardo Araújo saíram de lá no carro conversível vermelho do Imperial pela Avenida Brasil, no Rio de Janeiro, com o Roberto, calado, no banco de trás. Quando chegaram na altura da Cinelândia, o Roberto se levantou e disse: “Chega! Eu não quero mais essa porcaria. Eu desisto! Vou voltar para Cachoeiro de Itapemirim!” Daí o Imperial meteu o pé no freio e o carro saiu patinando pela avenida. Ele parou no meio do trânsito, ficou em pé no carro e disse: “Desistir o cassete! Você vai ser o maior astro da música brasileira! O meu nome é Carlos Imperial! Não estou falando isso à toa. Você não vai desistir porra nenhuma!”. Quando eu descrevo essa cena no livro, você a enxerga na sua frente. E ela é uma cena crucial porque se o Roberto desistisse, a gente não estaria falando dele agora.
Dizem que o Roberto detesta a cor marrom. Não entra em carro marrom, não pisa em tapete marrom, não se hospeda em quarto que tem marrom… Enfim, ele continua com essas superstições?
Continua! Boa parte delas, superou, mas muitas ainda não conseguiu. Por exemplo, desde os anos 1960 jamais sai por uma porta diferente da que ele entrou. Ele foi padrinho de casamento de uma cantora em uma igreja em São Paulo. Era um sábado e os fãs descobriram e cercaram a frente da igreja. Ele chegou de carro e os seguranças fizeram um corredor para ele entrar na igreja pela porta da frente. Ao final do casamento o padre falou que seria impossível ele sair pela porta da frente. Roberto ficou angustiado. Depois de muita conversa, o convenceram a sair por uma porta dos fundos. No dia seguinte, ligou para o padre perguntando: “Será que você pode abrir a igreja para que eu possa entrar pelos fundos e sair pela frente?”. O padre achou estranho e disse que ia ser difícil porque o zelador, que tinha a chave do portão dos fundos, não trabalhava aos domingos. “Se você quiser vai ter que pular o muro. Mas abro a frente para você”, disse o padre. Roberto foi lá, pulou o muro, entrou pela porta dos fundos e saiu pela da frente.
E as mulheres na vida do Roberto? Ele teve várias namoradas, casamentos, amantes…
Roberto é um amante à moda antiga. Do tipo que ainda manda flores! Ele teve paixões muito fortes. Para a primeira namorada, Magda, fez Quero que vá tudo para o inferno porque o pai dela achava que ele não tinha muito futuro. Depois ele conhece a Nice, a Amada Amante, com a qual tem um filho, o Dudu. A atriz Mirian Rios também uma grande paixão. E foi um relacionamento mais extrovertido. Ele saiu mais, ia a restaurantes, curtiu uma vida social. Ele fez a música A atriz para ela. E finalmente teve a Maria Rita. Quando ela morreu, ficou quase um ano sem cantar. Quando finalmente voltou, em um show em Recife, no ginásio Geraldão, foi uma choradeira geral. O cara estava emocionado. É da natureza humana, e a gente tem que entender. Algumas perdas são para sempre e a gente não consegue lidar com elas. Esse é um caso.
O Roberto ainda é um livro aberto. Como fechou o seu livro?
É curioso porque, à medida em que fui narrando, a história me conduziu para um desfecho. O livro Roberto Carlos em Detalhes, que cobriu a vida dele toda, foi publicado antes do meu, em 2006. Então, de lá para cá, são 15 anos que não tem nada escrito sobre ele. Muita coisa aconteceu. Mas concluí, tristemente, que este período final é marcado por uma atenção maior a questões que não são relativas à música e, sim, a negócios ou a questões judiciais. Levantei tudo isso para mostrar o distanciamento do ambiente natural dele, que é a composição, a interpretação, o som. A vida acabou empurrando para ele um papel de CEO da própria carreira. O chefe supremo do próprio mito. E isso tem um custo. Ele ficou num castelo, no olimpo, distante daquilo tudo que o originou.
Por Leonardo Millen
Fotos Daniel Cancini