Alexandra Loras e sua luta contra o racismo
A ativista e palestrante Alexandra Loras chegou ao Brasil em 2012, acompanhando o marido, Damien Loras, que assumia o consulado francês em São Paulo. Filha de um imigrante de Gana e de uma francesa, quebrou paradigmas não só por ser uma mulher negra frequentando os escalões do governo e da alta sociedade, mas, principalmente, por sua inteligência e sua militância contra o racismo. Com o fim da missão diplomática, o casal decidiu se radicar no Brasil e Alexandra escolheu dar continuidade ao trabalho social para abrir portas para mais negros se destacarem na sociedade.
Os negros consomem R$ 1,8 trilhão por ano, 40% do consumo global. Muito mais do que a classe A, que corresponde a 2% da população. Porém, as empresas preferem ser racistas a capitalistas. Só conversam com esse fragmento da população. Por isso que meu trabalho é ajudar as empresas a perceberem este engano.
O que mais te chamou a atenção quando veio morar aqui no Brasil?
Apesar de ser consulesa da França, sofri muitas microagressões e humilhações por ser negra. Eu esperava encontrar um país da democracia racial. Se o Brasil tem 54% de negros na população, esperava vê-los no Congresso, nos tribunais, como executivos nas empresas… Mas não foi bem assim. Só 1% desses cargos é ocupado por negros. E na televisão o negro era sempre retratado como faxineiro, motorista ou traficante de drogas. Percebi que havia aqui um racismo estrutural, um certo apartheid cordial, uma segregação sutil.
O preconceito é maior do que nos damos conta?
Certamente! A escravidão é muito presente na narrativa social. O Brasil se desenvolveu graças à exploração da mão de obra escrava. Isso criou uma desigualdade de percepção. A mídia no Brasil, por exemplo, dá muito mais destaque ao que acontece nos Estados Unidos, como o episódio do George Floyd, do que com o que acontece por aqui. No Brasil há 17 vezes mais negros mortos pela violência policial do que nos Estados Unidos. Segundo a Anistia Internacional, foram mortos no Brasil, de 2001 a 2015, mais de 800 mil jovens negros. E as pessoas não se assustam porque acham que todos esses jovens eram bandidos ou traficantes de drogas, o que é um absurdo!
Mas, de uns anos para cá, essa consciência melhorou. Temos cotas nas universidades, por exemplo, e os negros estão muito mais ativos e participativos…
Você tem razão. Não vamos avançar sem cotas. As cotas ajudaram a elevar para 350% a presença de negros nas universidades nesses dez últimos anos. O problema é que quando esses negros qualificados saem da universidade não conseguem trabalho nas empresas por conta do racismo estrutural que existe no Brasil. Não há oportunidades e as pessoas também ainda não sabem lidar com negros na liderança.
Essa exclusão também contribui para que os negros não ascendam socialmente e economicamente?
Claro! Os negros consomem R$ 1,8 trilhão por ano, 40% do consumo global. Muito mais do que a classe A, que corresponde a 2% da população. Porém, as empresas preferem ser racistas a capitalistas. Só conversam com esse fragmento da população. Por isso que meu trabalho é ajudar as empresas a perceberem este engano. A McKinsey divulgou uma pesquisa que revela que as empresas que apostaram na diversidade racial em seus quadros aumentaram em 35% a sua rentabilidade. Elas também podem perceber que é possível dialogar com o verdadeiro público brasileiro. Por isso é importante que as empresas contratem negros para seus quadros de criatividade e inovação e permitam que eles conquistem espaços de liderança.
Há tantos exemplos de negros criativos e geniais brasileiros, como Machado de Assis, considerado o maior escritor negro de todos os tempos!
Veja o exemplo do Carnaval carioca. É a maior produção do mundo em termos de criatividade, beleza, organização e performance feita por pessoas majoritariamente negras de comunidades carentes. É espetacular e gera milhões! Imagina se essas pessoas colocassem seu talento e capacidade organizacional para outros segmentos da economia brasileira? O Brasil estaria bombando! Pior do que a corrupção da Petrobras e da Odebrecht é a das instituições financeiras que têm legitimidade para cobrar 400% de juros por ano de um empreendedor da favela. Imagina se aqui tivessem as mesmas regras que na Europa e nos Estados Unidos, de 2% a 6% por ano de juros para empreender? Mas aqui o sistema funciona para as pessoas permanecerem embaixo da pirâmide. O salário mínimo de mil reais no Brasil é uma escravidão moderna! A média do salário mínimo nos países do G20 é entre quatro e sete mil reais! É absurdo!
Quantas vezes as pessoas cumprimentavam meu esposo e passavam direto por mim achando que eu era a empregada, a governanta ou a hostess do evento. Ou me davam o casaco para pendurar! Eu toda produzida e maquiada, mas não adiantava. Só quando eu subia no palco ou fazia o discurso de boas-vindas é que as pessoas se tocavam.
O Brasil tem condições de mudar isso?
Claro! Tem todas as condições de dar um salto quântico para dar dignidade às pessoas. Ninguém vai morrer de fome no Brasil. O país é o maior produtor de alimentos do mundo e o que mais desperdiça também. Para que gastar, por exemplo, milhões construindo hospitais em estádios de futebol para tratar a Covid e não reformar os hospitais que foram desativados por falta de recursos e melhorar os que já existem? Isso não interessa porque não dá holofote na mídia para governadores e prefeitos. Isso é um desperdício do dinheiro público. São escolhas que deveriam ser debatidas para que os dirigentes invistam aonde tem que investir.
Por falar em mídia, vemos muitos negros na propaganda. Isso é uma “mudança” ou serve apenas para as empresas dizerem que são politicamente corretas?
Queria ser tão otimista, mas não acho que há negros suficientes em propagandas. Nunca vimos uma família negra em comercial de margarina, pasta de dentes e absorvente. Então quer dizer que 128 milhões de pessoas negras não comem margarina, não escovam os dentes e não menstruam? Claro que isso precisa mudar.
Você já sentiu discriminação por ser negra?
Várias vezes. O racismo está escancarado em todos os lugares, em todas as camadas sociais. O racismo não é só as pessoas me chamarem de macaca. Como consulesa, recebi mais de seis mil pessoas na minha residência consular. E o protocolo francês faz questão que eu fique na entrada para dar as boas-vindas aos convidados. Quantas vezes as pessoas cumprimentavam meu esposo e passavam direto por mim achando que eu era a empregada, a governanta ou a hostess do evento. Ou me davam o casaco para pendurar! Eu toda produzida e maquiada, mas não adiantava. Só quando eu subia no palco ou fazia o discurso de boas-vindas é que as pessoas se tocavam.
As novas gerações já estão com um pensamento diferente, menos preconceituoso?
Acho que no mundo dos Ursinhos Carinhosos é muito bom pensar que as novas gerações mudaram. O Bolsonaro foi eleito por pessoas na maioria entre 18 e 25 anos. Então o patriarcado, o machismo e o racismo estão muito bem instalados nessa nova geração. Existe um teste elaborado pela Universidade de Harvard que mede o seu nível de racismo. Eu, que trabalho com este tema todos os dias, fiz e deu que sou preconceituosa leve! Ou seja, o racismo está dentro de todos nós. Antes da Covid, por exemplo, fui ao shopping JK e encontrei uma maquiadora negra que já tinha me maquiado e começamos a conversar. Na hora de embora, vi que ela estava com umas sacolas da M.A.C. e perguntei: “Você está trabalhando aqui agora?” E ela respondeu “Não… eu continuo no salão onde te maquiei”. Eu queria sumir. Eu pré-julguei que ela, negra, só poderia estar naquele shopping trabalhando e não como uma cliente. Veja como o racismo está em todos nós.
É duro admitir, mas é difícil ver negros frequentando espaços elitistas…
Exatamente. Quantos negros você convida para um aniversário dos seus filhos? Quantos negros estudam com eles? Na festa, eles estão curtindo com você ou estão lá na cozinha te servindo? É sempre bom perceber o quanto o racismo estrutural está presente nas nossas vidas. Eu mesma já passei por muitas situações. No aeroporto de Cumbica, certa vez, entrei na fila dos clientes VIP e os dois homens a minha frente foram recebidos com sorrisos. Quando chegou a minha vez a atendente falou: “Pois não… Essa fila é só para clientes Premium!” Eu precisei mostrar meu cartão de fidelidade para ser atendida. Outro dia fui dar uma palestra na Rede Globo. Eu sentei no auditório na primeira fileira reservada e uma moça da produção veio até mim e disse: “Você não pode sentar aqui. Essa fila é só para os palestrantes. Senta ali atrás…” Eu não acreditei e disse que eu era uma palestrante. Aí quem não acreditou foi ela, que nunca me enxergaria como uma palestrante. Um branco jamais vai passar por essas humilhações.
Você que foi do círculo diplomático, como o mundo enxerga o Brasil?
O pedigree do Brasil antes do Bolsonaro era de uma democracia racial. Um país da miscigenação. Até o imaginário mundial da “Garota de Ipanema” é de uma negra! Quando eu a conheci, fiquei espantada! Ela é branca, loira e de olhos claros! Eles pensam que é uma mulata de cabelos cacheados e corpão. Eles não sabem do preconceito racial que existe no país. Seu trabalho de conscientização está sendo requisitado pelas multinacionais.
E as empresas nacionais?
Muito pouco. As empresas ainda têm dificuldade em investir nessa conscientização. Elas pagam um belo cachê para um Ricardo Amorim dar uma palestra de economia, mas querem que uma palestrante negra vá lá de graça como parte das celebrações do Dia da Consciência Negra. Vejo organizações também que poderiam fazer a diferença, como a Organização das Mulheres do Brasil. Mas lá só 1% das mulheres é negra. Há décadas as mulheres lutam para poder trabalhar em igualdade com os homens. Mas isso só começou porque tinha uma negra em casa para cuidar dos filhos. Hoje isso mudou um pouco. Mas o que importa é que os feminismos têm que ser plurais. As oportunidades iguais não podem ser apenas para as mulheres brancas. As lutas têm que ter uma intersecção.
Existem negros em altos cargos que poderiam ser também porta-vozes contra o preconceito?
Claro! Nos Estados Unidos, com as cotas durante 28 anos, hoje há negras liderando empresas, como a Ursula Burns, CEO da Xerox, e negros com o Barak Obama, que foi presidente por duas vezes. Quando um negro é morto por um policial branco, a repercussão é enorme e atinge o mundo todo porque eles têm dinheiro e influência para fazer isso aparecer. Mas aqui no Brasil não há quem faça pressão política, econômica e, claro, na mídia.
E as mídias sociais? Elas não seriam uma alternativa?
Sim, são excelentes, porém elas funcionam com algoritmo. Como sou ativista, recebo no meu feed diversos posts que envolvem a luta contra o racismo. Mas no feed do meu ex-marido nenhum desses posts aparecem. Eles já estudaram o meu perfil e sabem os assuntos que me interessam.
O algoritmo é preconceituoso!
Claro! Faça uma busca no Google: “bebê negro”. Você vai ver milhares de bebês negros. Mas se você tirar a palavra “negro” e buscar “bebês”, você só vai ver fotos de bebês brancos. Só que bebês negros também são bebês. As ferramentas de busca na internet são altamente preconceituosas.
E qual é a sua previsão para o “novo normal” pós-covid?
Acho que vai haver um êxodo urbano. As pessoas vão sair das cidades e buscar trabalhar no home-office junto à natureza. Acho que devemos abrir mão dos velhos hábitos de consumo para deixar o planeta respirar um pouco. Também gostaria de ver as escolas transitarem para um quadro online diferente. As plataformas de videogames, por exemplo, que tem milhões para investir, poderiam criar um jogo para aprender a ler e escrever. As grandes empresas de tecnologia, como Apple e Samsung, poderiam entregar para as favelas todos os tablets, notebooks e celulares que eles tiram de linha e não vão mais vender. As operadoras de celular poderiam liberar o sinal da internet nas favelas para que as crianças possam estudar e se conectar com as aulas das escolas e universidades particulares gratuitamente. Por que uma escola particular que tem 20 alunos numa sala não pode ter outros 20 assistindo remotamente? As universidades poderiam disponibilizar bolsas gratuitas para negros se formarem em cursos de TI, graphic designer, entre tantos outros para eles darem um pulo na vida. Temos as soluções, só que elas não são conectadas. Eu sou apenas uma porta que as empresas deixam que se abra para que outras possam entrar.
Por Leonardo Millen
Fotos: Daniel Cancini