José Luiz Gandini, presidente da Kia conta os desafios do mercado automobilístico
O presidente da Kia Brasil, José Luiz Gandini, falou sobre os desafios do mercado automobilístico no mundo, os novos hábitos de vida após a pandemia e as viagens que costuma fazer com a mulher, a jornalista Leila Schuster.
Fundada em 1944, inicialmente como uma fabricante de bicicletas, a coreana Kia passa por uma revolução global em seus negócios. “A Kia está mudando de uma fabricante de veículos para uma empresa preocupada com a mobilidade limpa”, diz José Luiz Gandini, presidente da Kia Brasil, desde 1992 presente no país. Com a nova missão, a montadora quer a liderança do mercado global de veículos elétricos e planeja lançar sete novos veículos elétricos até 2027. “É uma meta ambiciosa, mas os coreanos são assim mesmo e vão alcançar”, diz Gandini. O Stonic, SUV compacto com motor híbrido e bateria 48 volts, lançado este mês, é o primeiro carro da nova filosofia da empresa.
“A Kia está mudando de uma fabricante de veículos para uma empresa preocupada com a mobilidade limpa”
Em outubro, a Kia trocou o slogan “o poder de surpreender” para “Movement That Inspires” (movimento que inspira).
Por que a mudança de conceito?
A Kia alterou a maneira de pensar o consumidor. Ela está mudando de uma empresa fabricante de veículos para uma empresa de soluções de mobilidade. Esse é o futuro do mundo. Com o novo slogan, a Kia deseja inspirar as pessoas a se moverem em direção aos seus objetivos. A Kia chama as pessoas para caminharem, fazerem exercício, andarem de bicicleta, andarem de motoneta – não sei se existe esse termo ainda (risos). Sabe aquelas motinhas elétricas, carrinhos menores? É uma realidade que acontece no mundo. Em todo lugar, independentemente do trânsito, o carro é um problema por causa da poluição, do meio ambiente, por tudo. A Kia está sintonizada, conectada, com o novo momento.
Em setembro, o senhor fez uma viagem a países como Itália e Suíça, e visitou o Salão de Mobilidade.
Quais as novidades que viu por lá?
No Salão, havia dois pavilhões enormes só com bicicletas e motos elétricas. É isso que mudou. Eu já via isso na Europa pelo tamanho dos carros, porque você não conseguia estacionar. Tem rua que você não pode entrar. É um problema europeu muito grande. No Brasil, nós ainda não temos esses problemas de espaço, a não ser nas grandes capitais, que você fica parado no trânsito e, de vez em quando, não acha estacionamento. A mobilidade que tratamos agora é de modo a atender as novas necessidades dos consumidores e preocupada com o meio ambiente.
“Com o novo slogan, a Kia deseja inspirar as pessoas a se moverem em direção aos seus objetivos. A Kia chama as pessoas para caminharem, fazerem exercício, andarem de bicicleta, andarem de motoneta”
Foi reflexo da sua ida para o Salão de Mobilidade?
Com certeza. Anteriormente, eu saía da minha casa e vinha para empresa de carro, e ela fica só a um quilômetro e meio de casa. A vida assim vai ficando muito monótona, sem se exercitar. Você não faz mais nada, fica sentado atrás da mesa. Sei que não sou a média. Tem muita gente que se mexe muito. Eu vou fazer 65 anos em março e percebi que a gente precisa mudar. Voltei da Europa e contratei um personal trainer. Agora, faço caminhadas três vezes por semana. Sigo para o trabalho de carro porque se vier andando, chego suado, não dá muito certo. De resto, estou mexendo um pouquinho. É preciso.
O que mudou com a pandemia?
A pandemia nos fez repensar a vida. Nossa mãe de Deus, o que eu perdi de amigos, o que a gente ficou parado… Mudou o mundo. Hoje, você tem de pensar o dia a dia de forma diferente. E a empresa também está indo por esse caminho. Hoje, só se fala em fabricar usando materiais reciclados e energias recicláveis. Esse é o foco da Kia no momento, nos carros híbridos e elétricos. Desembarcou no fim de outubro, em Vitória, no Espírito Santo, um veículo chamado EV6, um dos sete que a marca lança mundialmente até 2027. Trata-se de um carro totalmente elétrico que veio para homologação e vai ser comercializado no ano que vem. O carro é ultramoderno, maravilhoso. Acho que vai ser um sucesso. O carro é maravilhoso.
A Kia lançou o Stonic híbrido este mês, o primeiro SUV compacto-leve da marca no Brasil. Como se prepararam para a disputa entre as concorrentes
que também querem híbridos e elétricos?
A Kia começou fabricando bicicletas em 1944. Como todas as grandes montadoras no mundo, ela mudou para veículos a gasolina e diesel. O momento agora é de mudança total. O Grupo Kia é líder mundial em desenvolvimento de veículos movidos a células de hidrogênio, mas ela quer ser líder absoluta na produção de veículos elétricos. Ela vai buscar isso. Mudamos o raciocínio. A Kia está focada em energias alternativas e renováveis. Temos de sair um pouquinho desse combustível atual, que polui o mundo, cria essa poluição que acaba sacrificando a vida do ser humano. Nos próximos sete anos, a Kia quer lançar sete novos veículos elétricos para chegar à liderança do mercado de veículos elétricos.
“Com o novo slogan, a Kia deseja inspirar as pessoas a se moverem em direção aos seus objetivos. A Kia chama as pessoas para caminharem, fazerem exercício, andarem de bicicleta, andarem de motoneta”
É uma meta ambiciosa, não?
É ambicioso pra caramba, é verdade, e os coreanos são assim mesmo e eles vão buscar. Eles fabricam de celular a navio. O Stonic é o primeiro carro da nova filosofia da KIA. É um SUV compacto, com motor híbrido e bateria de 48 volts. Ele não precisa recarregar. Esse é o problema quando você traz um carro elétrico no Brasil, onde não temos a tecnologia pronta preparada para o usuário poder carregar a bateria do seu veículo e corre o risco de ficar na mão. Tempos atrás, a Leila estava com um Soul elétrico e andava só na cidade. Ela não podia sair daqui porque não tinha onde carregar. Você para num ponto para abastecer o carro e demorava de 8 a 9 horas para carregar a bateria.
As baterias eram uma queixa recorrente de quem comprava os elétricos. Elas mudaram?
Sim. Existem baterias novas e maiores hoje, com 400, 500 quilômetros de autonomia. Mas acho que o Brasil está muito mais pronto, imediatamente, para um carro híbrido que não precisa carregar. Você mesmo carrega, quando o carro está em movimento.
As discussões sobre o futuro dos automóveis ganharam força nos últimos tempos, sobretudo os elétricos e híbridos. Como a Kia se prepara para isso?
Eu recebi recentemente o primeiro Sportage híbrido. A linha de produção dele para o Brasil começa em janeiro do ano que vem, mas o carro vem para ser homologado e fazer todos os testes. Não existe mais Sportage a gasolina. Só flex. Existem as últimas unidades que temos no Brasil. Nós temos o Stonic, depois o Sportage híbrido, depois o Niro híbrido, um carro totalmente novo, para venda em fevereiro.
O senhor está na presidência da Kia desde os anos 1990. O perfil do consumidor no Brasil mudou?
Mudou, mas mudaram também os produtos. Quando começamos com a Kia no Brasil, nosso carro-chefe era a Besta. Por que? Porque faltava esse produto no país. A Kombi não tinha direção hidráulica e ar-condicionado. Nós, então, entramos num nicho de mercado atendendo a necessidade de um produto de transporte de pessoas com mais conforto. Depois, introduzimos o Sportage, um SUV, motor diesel ou gasolina, com tração nas quatro rodas, e o povo começou a usar esse carro, além do trabalho, para uso familiar, passeios, sair um pouquinho fora do habitat normal de pistas asfaltadas. O Sportage se manteve como nosso carro-chefe durante todo o período. Estou falando de mercado, mas gostaria de falar do consumidor. Com a pandemia, o consumidor com dinheiro, que pode comprar o que ele quer, não vai deixar o dinheiro no banco para render 0,2%, 0,3% ao mês, e deixar de ter aquilo que tem vontade porque não sabe se vai estar vivo amanhã. Cara, tem carro sendo vendido por R$ 17,5 milhões no Brasil. É de ficar de boca aberta. Repito: estão vendendo um carro esportivo por R$ 17,5 milhões no Brasil. Dias atrás, me ofereceram uma Ferrari, sonho de consumo de qualquer mortal, usada, 2019, por R$ 9,5 milhões. É um modelo específico, mais caro que os normais, e soube que foi vendido, entendeu? Pega a marca Porsche. Vende atualmente uma barbaridade. Nunca foi assim. Esse não é um fenômeno com todos os produtos, isso acontece com os mais caros. Isso acontece também com os condomínios fechados fora de São Paulo. Os preços dos terrenos triplicaram durante a pandemia. Os aluguéis mais do que triplicaram. Não tem mais casa para alugar. É uma mudança de perfil das pessoas com mais dinheiro.
O senhor assinou, a convite do ex-presidente Michel Temer, uma lei chamada Rota 2030. Como ela funciona?
Os carros começaram a pagar pelo que eles poluem através da Rota 2030. Você pega um carro a gasolina beberrão, que gasta bastante combustível, e ele cria um débito da empresa com o governo. É como se fosse uma balança: entre outubro de 2021 e setembro de 2022, por exemplo, você se debita dos carros que gastam muito combustível e se credita com carros híbridos e elétricos que vendeu, porque eles geram um crédito na eficiência energética. No fim do ano, será feito um balanço em que vou ter ou um débito para pagar ao governo ou zero a dívida, porque também não vou receber dinheiro. Para ter noção, carros da Kia mais beberrões, com motores V6, mais antigos, que não estão dentro da tecnologia atual, chegam a pagar R$ 31 mil. Enquanto um desses híbridos me dá um crédito de R$ 2 mil. No final do ano, faço uma composição: quanto tem para creditar e debitar. Esse é um problema seríssimo que todas as marcas estão compenetradas para não deixar um volume de dinheiro monstruoso a pagar daqui um ano. Se pegar uma montadora nacional que não se preparou, pode ter um prejuízo astronômico, coisa de bilhões de reais. Temos de estar preparados para vender os carros híbridos e elétricos para que venha a pagar a conta de produtos que não vamos conseguir transformar em híbrido ou elétrico. Ainda vai existir alguma coisa da gasolina normal.
A indústria automobilística sofre com a falta dos semicondutores, que fabricam os chips, e chegam a paralisar fábricas e turnos de trabalhos. Esse é, hoje, o maior problema do setor?
Depende. Para mim, o maior problema é a falta de contêiner. Estamos vivendo, realmente, um momento muito difícil. Atualmente, carros não são fabricados porque faltam peças, faltam chips… Um problema que a grande maioria não sabe é a falta de navios. Está faltando contêiner. Exemplo: nós fabricamos um caminhão leve, o Bongo K2500, para entrega em grandes centros. Esse caminhão é produzido no Uruguai. Ele vem inteirinho desmontado da Coreia e é soldado, pintado, montado e estofado na fábrica do Uruguai. O motor e o câmbio vêm prontos da Coreia, o chassi é feito na Argentina. O pneu e a bateria são brasileiros. Ou seja, é um produto de alto índice de nacionalização. Eu pego esse produto da Coreia. Coloco, em média, cinco caminhões e meio em um contêiner de 40 peças. Antes, eu pagava US$ 1.800 por contêiner para sair da Coreia e chegar ao Uruguai. Hoje, pedem até US$ 14.000 para um contêiner. Pensa o que é isso: não é o dólar que subiu de R$ 4 e para R$ 5,70. É o contêiner que subiu de US$ 1.800 para US$ 14.000! E não tem contêiner mesmo a US$ 14.000 porque eles remanejaram as rotas dos navios. Vivemos um momento infernal.
E ainda tem a falta de chips.
Exatamente. A verdade é que o setor está totalmente desestruturado, desregulado. Tudo o que acontece hoje é reflexo de uma crise gerada pela pandemia. Todos os meus carros que usam chip – Carnival, Stonic, Sportage – vem de navio. Não precisa de contêiner nesse produto. Mas os navios diminuíram as rotas. Ou seja, diminuíram o número de viagens. Eu tenho um embarque de Carnival que saiu da Coreia no fim de julho. Ela viajou agosto, setembro e chegou em outubro. O carro ficou noventa dias no mar porque o navio vai pegando e descarregando carros em outros portos. O transit-time aumentou demais. Antes da pandemia, um carro da Coreia para o Brasil demorava em torno de 35 dias. Agora está em 90 dias, fora o que esperamos para produzir porque não tinha chip.
Importadores de veículos contataram o governo para que seja renovada a portaria que reduz o imposto de importação para modelos híbridos e elétricos trazidos de países fora dos blocos que mantêm acordos comerciais com o Brasil. Se isso não ocorrer, até o fim do ano, as alíquotas para esses veículos poderão chegar a 35%. Qual seria o impacto na indústria?
Não tem cabimento. Parece que o governo está brincando. Você trabalha, insiste muito para Kia desenvolver carros híbridos e elétricos, faz um trabalho conjunto forte no Brasil e, de repente, o imposto de importação que hoje varia entre 0 a 7%, e dependendo da classificação do produto, vai a 35%. Como pode pagar 35% num carro que custa muito mais caro lá fora porque é uma tecnologia nova, muito mais avançada, com um dólar que chegou a bater R$ 5,76? Como vou pagar a eficiência energética desses carros? É muito complicado.
Qual a sua perspectiva para a economia em 2022?
Esse ano que vamos entrar vai ser muito difícil no Brasil. Não sou pessimista, eu sou otimista, acredito no meu país, não saio daqui por nada desse mundo. Eu saio para passear, mas morar e trabalhar fora, não. Nasci aqui e vou morrer aqui, se Deus quiser. Acho que o Bolsonaro está passando por uma fase complicada porque está batendo de frente em muita coisa que existia de errado no Brasil. A gente sabe disso. Se ele está certo ou não, não vou discutir. Não sou político. 2022 vai ser muito complicado. Existe uma direita, representada pelo Bolsonaro, e uma esquerda, representada pelo Lula. São dois radicais. Não sei se teremos uma 3ª via, mas enquanto não se decide, fica a dúvida quem vai levar a eleição. O dólar vai disparar, o mercado deve cair ainda mais. Acho que vamos viver momentos difíceis. Não estou falando mal do meu país, estou falando de um momento. Não dá para ser diferente. Se não, você quebra nesse país. O empresário muito otimista quebra. O muito pessimista também vai ter problema. Prefiro ser realista.
O senhor e sua mulher viajam com muita frequência, no Brasil e no exterior. É um hobby?
Viajar abre a cabeça. É preciso saber o que existe lá fora. Precisamos sair do Brasil, saber o que se passa lá fora, o que está acontecendo, como estão agindo, o que estão fazendo para as coisas darem certo. Viajo muito a trabalho. Preciso, com frequência, ir para a Coreia ou os Estados Unidos, onde a Kia tem escritório. Quando ocorrem eventos da Kia fora desses países, costumo trabalhar dois ou três dias, prazo de uma viagem de negócios internacional, e depois aproveito para conhecer aquele país.
Quais os lugares imperdíveis que recomenda?
Uma viagem que ficou na história da minha vida e da minha família foi fazer safári na África do Sul. É maravilhoso. Uma viagem mais romântica: Maldivas, coisa mais linda do mundo, uma água transparente, um lugar maravilhoso que tenho vontade de voltar. Fui ver as pirâmides do Egito. É uma coisa muito particular. Não sei se voltaria ou se faria com que meu filho fosse, mas é importante conhecer, saber, viver aquilo. A Kia nos levou num evento em Sharm el-Sheikh, no Egito, e fomos mergulhar. É o segundo melhor lugar para mergulho do mundo. É uma coisa maravilhosa, parece que estamos dentro de uma garrafa pet de água. Sempre gostei muito de Mônaco, acho maravilhoso, é um negócio fora da realidade. Passei lá na minha última viagem. Fui convidado por uma empresa fabricante de barco para ver um lançamento e fui no iate clube de Mônaco. Nunca tinha ido, maravilhoso. Aproveitamos e fomos a Cannes num road show e esticamos ao Salão da Mobilidade. Aconselho todo mundo que pode a dar as suas fugidas porque a gente volta com outra cabeça. Faz muito bem para o seu negócio. Não é uma perda de tempo, não.
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Entrevista Bruno Meyer
Foto Gandini: Juca Ferreira
Foto carros: Divulgação