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O novo papel do jornal


No dia 4 de janeiro de 1875, saía de uma máquina impressora de segunda mão, e movida pelos músculos de seis escravos libertos, a primeira edição, de pouco mais de dois mil exemplares, do jornal A Província de São Paulo. Em dezembro 1889, o jornal mudava de nome: passou a se chamar O Estado de S. Paulo, sob o comando da família Mesquita, e começou a trilhar um caminho sem volta de independência editorial, credibilidade e crescente prestígio. Cento e trinta e cinco anos depois, o velho Estadão mantém todos esses valores, mas chega à era moderna inteiramente redesenhdo,a fim de se adequar ao inevitável mundo digital. Essa revolução, iniciada após o afastamento voluntário da família Mesquita da direção do grupo, é hoje comandada, não por coincidência, por um especialista em tecnologia de informação – Silvio Genesini, 57, que dirigia a Oracle no Brasil. Nesta entrevista exclusiva, a principal pergunta é: os jornais de papel vão acabar?
Por Celso Arnaldo Araujo Fotos Daniel Cancini O Estado de S. Paulo há 135 anos acompanha o dia a dia do Brasil. Como é para você, egresso de uma outra área, comandar um grupo tão poderoso e tão mitológico?
Eu leio O Estado desde os meus 10 anos de idade, porque meu avô, em Itapetininga, interior de São Paulo, assinava o jornal. Quando me convidaram para presidir o grupo, foi a primeira coisa que me veio à cabeça. Essa é uma ligação que, do ponto de vista emotivo, foi muito importante para eu ter aceito o convite. No início, aliás, achei que o convite não fosse para mim. Depois percebi que a direção e os conselheiros do grupo buscavam uma pessoa com ligações com a área de tecnologia para comandar essa transição.Qual é o tamanho de sua liberdade para impor mudanças?
Na verdade, a construção do novo Estado é feita em conjunto com o Conselho, onde se sentam os Mesquitas. Do ponto de vista da linha editorial como da manutenção da tradição e da credibilidade, o Estado é o mesmo – adaptado para os novos tempos. Se você olhar o redesenho do jornal, é o Estado mais jovem, mais adaptado aos tempos da internet – mas ainda com seus editoriais na página 3, etc. Durante 20 anos de minha vida fui consultor e ajudei muitas empresas a enxergar o futuro e atravessar um processo de transformação. O redesenho do Estado acabou unindo a mim e os conselheiros do Grupo.O ano de 2009 foi brilhante para o jornalismo de O Estado, com uma série de reportagens que abalaram instituições.
Sem dúvida. Fizemos a divulgação dos atos secretos do Senado, a revelação dos arquivos do Araguaia, que exigiu cinco anos de conversa de nosso repórter com o major Curió, e o furo sobre a fraude na prova do Enem – onde tivemos um comportamento muito elogiado. Fomos abordados às 3 da tarde (por alguém que tentava vender a prova), desconfiamos que seria a prova real por volta das 7, entregamos as informações para o Ministério da Educação e não iríamos publicar a notícia nesse dia – até que por volta da 1 da manhã o ministro nos liga confirmando a autenticidade do documento. Só então decidimos dar aquela ordem famosa, “parem as máquinas”, para publicar a notícia. Foi um furo responsável porque só publicamos depois da confirmação do ministro.A tiragem do jornal tem se mantido apesar do avanço avassalador da mídia eletrônica?
A tiragem está subindo e vai subir. De novembro a março tivemos 30% de crescimento de circulação e, em condições normais, podemos crescer mais 30% este ano.Pessoas da faixa dos 50 anos têm prazer em ir à banca comprar jornais. Com você ocorre o mesmo?
Sem dúvida. Jornais e revistas. E acho que uma parte dos jovens vai recuperar esse prazer, passando a ver o jornal como um charme do passado, um item “old fashion”, como o vinil em relação ao CD. Vejo indicações disso a todo momento. Um pedaço importante desta geração vai voltar a ler jornal. Aliás, uma das razões para eu ter aceito o convite é que tenho uma forte relação com a mídia impressa. Nas sextas-feiras à noite, passo nas bancas para comprar as revistas de sábado que já saíram, e no sábado à tarde vou comprar a primeira edição dos jornais de domingo.

Mas é impossível a um jornal do porte e da tradição secular de O Estado ficar fora do mundo digital?
Não seria uma opção viável porque é preciso construir o futuro. Daqui a uns 10 anos vamos ter o equivalente ao jornal na mídia eletrônica. Não exatamente uma tela de computador, mas algo diferente.

Um dos dilemas dos grandes jornais nessa fase de transição é: cobrar ou não cobrar pelo acesso ao portal?
O que a internet está fazendo não é muito diferente do que a mídia tradicional sempre fez, baseado em duas fontes de renda: venda em banca mais assinaturas e publicidade. Outras mídias nasceram apenas com publicidade, como a TV – que, ao ir para o cabo, tornou-se um mix de publicidade e assinatura. O modelo da internet é igual. No começo, a única fonte era a publicidade. Agora, informações muito especializadas – como dados financeiros – são liberadas só para quem paga. Ou seja, um modelo misto: um pedaço muito grande em aberto, contendo as hard news, as notícias do dia a dia, e uma cobertura especializada de economia e negócios, por exemplo, paga por quem precisa dela.

Há quanto tempo você estava na Oracle?
Há cinco anos e numa situação muito boa, com a empresa crescendo e fazendo aquisições. Mas o desafio do Grupo Estado é maior do que o de uma empresa de software – que já está no novo mundo da alta tecnologia. O desafio do Estado era o de uma transformação mais aguda. Mas os problemas me atraem. É o desafio mais difícil de minha carreira: suceder a família Mesquita e liderar esse processo de transformação.

Qual é o faturamento do grupo hoje?
Cerca de 900 milhões de reais, com lucro líquido por volta de 40 milhões em 2009 – bastante bom, considerando que foi um ano de crise que afetou todos os jornais. Todas as nossas operações – os jornais, a rádio, a OESP Mídia e a Agência Estado – têm lucro e geram caixa.

O diretor-presidente e os demais diretores profissionais do grupo têm ingerência na linha editorial de O Estado?
Aqui funciona a famosa separação Igreja- Estado: a área de administração e negócios não tem ingerência sobre a área de conteúdo – que tem independência até, se for o caso, para criticar um anunciante. A área de conteúdo se reporta ao Conselho, que tem um grupo de avaliação editorial que dá as diretrizes, coerentes com as tradições do jornal. Mas o diretor de conteúdo tem toda a liberdade, no impresso e na internet, de fazer uma cobertura totalmente independente.

Um ano com eleições para presidente, governadores, senadores e deputados, é também um ano gordo para os jornais?
Sim, e isso já começou a ocorrer, mesmo porque, além das eleições, é ano de Copa do Mundo – evento que realimenta a economia em quase todos os segmentos, como eletrônicos. A eleição também tende a produzir aquecimento, até porque, ao contrário da primeira eleição do Lula, quando ainda se tinha dúvidas sobre a continuidade da política econômica, neste parece claro que, independentemente do vencedor, a economia não muda. Nossa dúvida é só com relação ao dólar. Os jornais têm uma situação sui generis – nosso insumo principal é papel importado. Real valorizado só nos beneficia, pois não exportamos nada. O único risco é o dólar subir muito e o papel ficar mais caro. Mas, de qualquer forma, em ano eleitoral as pessoas leem mais jornais – que têm uma cobertura muito mais analítica que os sites.

Qual é a participação das assinaturas na circulação de O Estado?
Assinaturas respondem por 80%. A fidelização do cliente vem pela assinatura. Mas também se cria uma relação do leitor com os classificados – muita gente compra jornais nos fins de semana por causa dos classificados, sobretudo de automóveis e imóveis. O mercado automobilístico e imobiliário tem uma relação forte com os jornais.

A que nível de venda podem chegar os grandes jornais com esse revival da notícia em papel?
Nunca voltaremos a ter tiragens de 1 milhão de exemplares, como no tempo dos famosos “anabolizantes” liderados sobretudo pela Folha nos anos 90 – brindes, sorteios de carros, promoções artificiais que não fidelizam. Nossas campanhas hoje são associadas ao conhecimento – descontos para teatro, etc – para destacar o valor do jornal. Os jornais importantes do Brasil podem se manter numa faixa de 300, 350 mil. Mas não quero passar a Folha. Quero que a mídia jornal, como um todo, cresça.

Algo a ver com o iPad, que acaba de ser lançado?
Não. Aliás, nós fomos o único jornal brasileiro a fazer uma solução nativa para o iPad. Mas, no futuro, teremos a versão eletrônica de algo muito parecido com um jornal, que você vai levar para a academia, para um café, com a sensação de leitura semelhante à do papel – do ponto de vista da portabilidade, poderá até ser dobrável e colocado debaixo do braço, com o mesmo prazer de leitura do papel e a vantagem de interação com outros sites. E isso o iPad ainda não dá, porque é apenas um iPhone um pouco maior. Estamos assistindo agora à pré-história dessa solução. Quando ela estiver madura, a nova mídia terá o mesmo look and feel do jornal, com a publicidade podendo ser inserida de uma maneira mais inteligente, permitindo maior interação com o leitor. Como isso ainda não ocorre, o valor do espaço publicitário dos portais ainda não chega perto dos jornais, embora o jornal tenha 1 milhão de leitores e o site, 5 milhões. A experiência sensorial do leitor de jornal é muito melhor. Mas repito: daqui a 10 anos, isso vai mudar.

Nós vamos chegar ao fim do século lendo papel?
O papel um dia vai acabar – não pelo problema ecológico, pois isso será resolvido com o papel reciclado, mas por ser uma operacão logística cara. Entregar jornal nas casas é uma operação romântica. Mas, mesmo sem papel, as pessoas futuramente terão a mesma sensação de estar lendo jornal numa mídia digital, paralelamente ao fato de que haverá um renascimento do charme de jornais e revistas – como o gourmet que só come em restaurantes novos e sofisticados, mas descobre uma casinha charmosa onde se serve uma massa caseira ou um sanduíche especial.

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