Go Where – Lifestyle e Gastronomia

Um convite ao misterioso mundo do chef Tsuyoshi Murakami


Definir a nova fase de Murakami não é tarefa fácil. Dez quilos mais magro do que na época do lendário restaurante japonês Kinoshita, e com a aparência mais jovem – muito graças ao coque samurai que adotou recentemente –, aos 51 anos, Tsuyoshi Murakami retorna à cena gastronômica mais fluido e autênti co. Despretensioso, prefere não definir o que faz no restaurante, batizado com seu sobrenome, que inaugurou em setembro de 2019. “Quem tem que definir o que faço aqui são os clientes. Quem comer, vai dizer”, responde. O ideograma Mu, que acompanha o nome da casa, é tão enigmático quanto a resposta do chef. Significa “nada”, “vazio”. E o vazio “ocupa” boa parte do espaço de 220 m2 e pé-direito alto, sem quadros nas paredes ou outros elementos de decoração.

Um longo balcão demarca o limite entre a cozinha e os 12 privilegiados clientes que degustam as criações de Murakami em apenas dois horários por noite: às 18 h e às 21 h. Essa particularidade – que alguns chamam de minimalismo – chama a atenção de alguns clientes, ávidos por preencher o local com sugestões de décor. E quando lhe perguntam se a obra do restaurante não está concluída, Mura dá outra de suas respostas instigantes: “são as pessoas que preenchem o espaço. O Murakami é o nada, porque o tudo são os clientes. São eles que nos sustentam e pagam as nossas contas. Para os japoneses, cliente é Deus.” Não é por acaso que todas as cadeiras ficam voltadas para a cozinha. Nela, Murakami é o entertainer, de corpo presente e mente vazia para simplesmente fluir diante de sua plateia, seja no corte do peixe ou em uma música que decidir entoar no meio do jantar.

O cardápio não é fixo. Quem se sentar ao balcão do Murakami deverá estar aberto a experimentar o que o chef sentir que deve criar, de acordo com o momento, os ingredientes que ti ver à mão e a sua intuição. Ele cria pratos como um músico toca um instrumento. E espera que o público sinta sua comida como quem aprecia uma obra de arte.

Na casa nova, Mura tem como sócios a esposa Suzana e o filho Jun, que estão muito mais presentes nos basti dores, cuidando de rotinas administrativas – embora também atuem na cozinha –, para que o chef possa focar na sua arte.

Murakami (o restaurante) não é necessariamente uma esfinge, mas propõe tantos enigmas, que resta-nos deixar de lado as tentativas de explicá-lo e, simplesmente, devorá-lo, prato por prato, confi ando na perícia de Murakami (o chef). Ele convida os clientes a uma experiência única, que vai muito além do paladar. Como ele mesmo diz, “só vindo aqui para entender”.



Você já está bastante acostumado a dar entrevista, né?
Mais ou menos, porque cada dia é um dia. Eu tento usar essa maneira de “funcionar” para cozinhar também. Respiração, leveza, articulação… Nada tensiona. O corpo pesado e duro influencia no corte do sashimi. Eu adoro tocar piano e cantar, e se você coloca muita tensão, os harmônicos não saem bonitos. Na cozinha tem que haver essa conexão com o que vem do mar, do pasto, do ar. Eu tenho 51 anos de idade. Não estou aqui para brincar, apesar de gostar da brincadeira.

Você saiu do Kinoshita em 2017, e há boatos de que foi para ir ao encontro da sua espiritualidade. É verdade?
Ao encontro da espiritualidade, eu sempre estive, nesse eixo, no equilíbrio. O que me fez sair do Kinoshita foi uma sociedade de dez Capa anos. O meu ex-sócio, Marcelo, quis continuar. Fiquei dois anos fazendo eventos, nesse mesmo formato para doze pessoas. Evento é muito bom, mas é meio “papai e mamãe”, você leva tudo pronto. E minha vocação é restaurante. Passaram-se dois anos para formatar a musculatura e tomar coragem para montar o meu, em família.

Longe de ser um período sabático, então?
Foi um período que envolveu o sabático e o trabalho. É tudo ao mesmo tempo. Não quis categorizar para dizer que era uma coisa ou outra. Mesmo saído do Kinoshita, continuo o mesmo. Tirando o coque samurai… Sim. Tinha que mudar. 25 anos de casado… se não, minha mulher ia me trocar por outro. Apesar de o menu do Murakami mudar todos os dias, as criações do chef têm duas coisas em comum: apresentação impecável e valorização máxima dos ingredientes.


Quem se sentar ao balcão do Murakami deverá estar aberto a experimentar o que o chef sentir que deve criar, de acordo com o momento, os ingredientes que ti ver à mão e a sua intuição


No fundo, no fundo, esses dois anos foram um ensaio para o que queria fazer aqui no Murakami?
Acho que não… Quando decidimos abrir o Murakami, aqui na Lorena, já tinha esse lance do silêncio dentro de mim. O ideograma quer dizer “nada”, “silêncio”, “vazio”. As pessoas me perguntam por que não usei o ideograma do meu nome, e não usei porque ficaria muito normal. No Japão é comum que os restaurantes tenham o ideograma do nome do próprio restaurante, aqui não. Eu quis colocar o ideograma que representasse o Murakami interno. Saí de uma operação para entrar em outra, a passagem foi muito natural. Mantivemos esse formato dos eventos para 12 pessoas aqui no Murakami. E as pessoas não acreditam que só fazemos uma reserva às 18 h e outra às 21 h. Me perguntam se eu fecho as contas, e eu respondo que não sei, porque quem fecha as contas é a Suzana, minha esposa, e o Jun, meu fi lho. A minha parte – ou pelo menos 80% dela – é o operacional. Eu fi co na cozinha, interajo com os clientes e tento mostrar o simples de uma maneira simples.

Por que decidiu sair dos eventos e, finalmente, abrir um restaurante com a família?
É a minha vocação. Evento é muito bacana, mas você já leva o cardápio fechado, vai até a casa do cliente. Aqui não, as pessoas vêm na minha casa, posso mudar o prato, a técnica, a abordagem é outra. Leio, melhor o cliente, olho nos olhos e sinto o que ele quer comer. Cada pessoa que senta aqui é diferente. Eu não posso cozinhar achando que todo mundo é igual. E acreditei que um restaurante que muda o cardápio todo dia e trabalha em família – que é uma coisa rara hoje – seria uma boa sacada. Vamos ver. Faz só cinco meses que inauguramos e pode ser que não dê certo. Se isso acontecer, é só fechar. Não tem mimimi. O
que não dá é para empurrar com a barriga.

E qual o papel de cada um no Murakami?
A sociedade é formada por minha esposa, meu filho e eu. Cuido da operação na cozinha, meu filho também está na cozinha, mas cuida um pouco do administrativo, a Suzana cuida do financeiro. Faço as compras também. Como a operação é pequena, é muito flexível. A Suzana também cuida das sobremesas. Ainda bem que tenho o Jun e a Suzana para cuidar dessa outra parte. Resta a mim beijar o seu estômago.

Teve receio de trabalhar em família?
Nós três [Mura, Suzana e Jun] fizemos um teste chamado MBTI [Myers-Briggs Type Indicator] para ver se a sociedade ia dar certo. São 500 perguntas do psicólogo Carl Jung e você responde de bate- e-pronto. Uma das linhas que me chamou muito a atenção ia de zero a 100 entre sentir e pensar. O Jun e a Suzana eram 100% pensamento e eu era 100% sentimento. E eu imaginei que isso poderia dar certo. Sou muito do sentir mesmo, muito intuitivo, faço tudo meio no cheiro, só funciono vendo tudo na hora. Por isso, o cardápio muda todo dia.

Qual a proposta do Murakami? O que pensou para essa fase?
O que eu pensei foi que o menos é muito. Como no piano: toco músicas de Schumann, Mozart, com poucas notas, para crianças. É isso o que fazemos aqui. Cozinhamos com poucos ingredientes, sem muita firula, isso já é da filosofia japonesa. Apesar de estarmos no Brasil, um país tropical, com produtos diferentes dos japoneses, tentamos fazer o melhor com o que o Brasil nos oferece. Mas algumas coisas básicas que precisamos para dar complexidade aos pratos são importadas.

Esse conceito tem um nome ou é uma invenção sua?
Nada a gente inventa. O que a gente faz é reelaborar. Eu não queria categorizar, nem rotular, por isso o ideograma do “nada”.


Um longo balcão demarca o limite entre a cozinha e os 12 privilegiados clientes que degustam as criações de Murakami em apenas dois horários por noite: às 18 h e às 21 h


Você trabalha à base da inspiração do dia?
Inspiração do dia fica meio clichê. É o nada, o não pensar. Porque mesmo quando se diz “inspiração” já se tem uma ação pensada. E se não pensa nada, você pega os ingredientes e tudo se transforma. É como dirigir ou beijar, depois de um tempo, você não pensa mais, simplesmente flui. Nós tentamos cozinhar com essa leveza. Nem vou usar a palavra “liberdade”, porque a liberdade, em si, pode ser uma forma de servidão. Por isso digo que é tudo ao mesmo tempo: servidão e liberdade, tristeza e alegria, branco e preto. E aí vai um pouco da filosofia oriental chinesa, do taoísmo, do equilíbrio. Eu tenho parado de usar a palavra “trabalhar”, porque trabalho significa tortura. Prefiro usar “ação”, “atitude”, “resolução”, “solução”. Por isso, eu não penso muito. E se penso, é muito rápido. Se o Ian [cozinheiro do restaurante] está branqueando brócolis, por exemplo, com as minhas referências internas eu já ajo. Pensou, fodeu.

A ausência de um cardápio fixo atrai ou afasta as pessoas?
Eu não tenho medido isso. Nosso restaurante é como a natureza. Tem dia que está cheio, tem dia que não entra ninguém… E tudo bem. Se bem que agora não tem acontecido muito isso, mas no início, como não houve uma estratégia agressiva de divulgação, tinha.

Como é isso de que “vai ter sushi se o peixe quiser virar sushi”?
Fale sobre essa sua conexão com o alimento. Na verdade, o cardápio é feito no intervalo entre as 18 h e as 21 h. Pelo menos o esqueleto do cardápio. O resto é definido com o que tenho no dia. Quando a gente faz a escolha, pelo menos na cultura Murakami, não há muitos elementos. Se só tem shoyu, vinagre de arroz, missô e os dois tipos de saquê [doce e seco], é isso. A variação acontece em cima desse tema. Eu posso usar vapor, grelhado, cozido, marinado, frito, o que for. Tudo vai girar em torno dessa energia. Por isso, a coisa mais importante para nós é o produto. Claro que isso já se tornou um clichê, porque todo mundo diz. Mas a nossa culinária [japonesa] influenciou a culinária francesa no final dos anos 1960 e se criou a nova cozinha francesa.

Você traz algo do Kinoshita para o Murakami?
Kinoshita é o nome do meu sogro, começou na Liberdade em 1976. Ficamos lá até o final de 2006. Depois fechamos e ficamos um ano em obra para abrir na Vila Nova Conceição. Foram dez anos de sociedade e foi uma escola. O que trago dessa história? O acúmulo. Acredito que você dá continuidade ao que você é. As coisas vão se integrando. É um acúmulo de experiências. Sinto que sou a mesma coisa que era lá. Mas não adianta só eu dizer “eu sinto”. A coisa mais difícil de responder depois que abri aqui é se eu estou feliz. Eu digo: “você vai me ver trabalhar e vai saber se estou feliz ou não”. Sinta você. A dona Selma, que trabalha comigo, cuida das louças que trouxemos do Japão com muito carinho. E tive vários feedbacks sugerindo que eu a escondesse. Essas pessoas não entenderam nossa proposta. Você está comendo na minha casa, é tudo aberto. Por que a parte de higienizar a louça tem que ser escondida? Está todo mundo aqui em ação. E quem tem que sentir isso é o cliente. Não sei se entregamos isso para os clientes, mas queremos oferecer uma experiência única. Todo dia é diferente.

Você tem pretensões de ganhar estrelas Michelin com o Murakami ou acha que atrapalharia?
Não atrapalharia de jeito nenhum. Se ganharmos será ótimo. Ganhar estrela ou receber prêmio é muito válido para o negócio. Eu falo inglês, japonês, italiano, então não terei problemas de comunicação para receber gente de fora. Comunicação é uma coisa que adoro, e principalmente com os produtos que usamos aqui. Adoro me comunicar com o atum, com o robalo, com o linguado, com a maçã, com o tomate. Eu realmente sinto que eles falam comigo.


Por Mariana Santos

 

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