“Memórias do Vinho” reúne Herson Capri e Caio Blat em reflexões sobre arte e vida

Os atores Herson Capri, de 73 anos, e Caio Blat, de 45, mergulham nos vínculos familiares em Memórias do Vinho, peça que marca a última obra teatral de Jandira Martini, em colaboração com Maurício Guilherme. Dirigida por Elias Andreato, a peça foi criada a partir da ideia do produtor Fernando Cardoso, que também realiza a produção ao lado do sócio Roberto Monteiro, da Mesa2 Produções. A reapresentação da história, que se passa em uma valiosíssima adega, fica em cartaz de 5 a 27 de julho, aos sábados e domingos, no Teatro Renaissance, em São Paulo. Em entrevista exclusiva, os atores falam sobre o reencontro nos palcos, a relação com o universo do vinho, os bastidores da parceria em cena e fora dela, o amadurecimento na profissão e as lutas atuais da classe artística.
Por que o público deve assistir à peça?
Caio Blat: A peça aborda histórias que mexem com todo mundo, como mágoas, segredos e revelações. E é muito simbólico que tudo aconteça em um porão, onde fica a adega do pai (Daniel), na qual ele guarda a coleção de vinhos e os segredos. São dois homens muito duros, distantes e sozinhos, consequência da morte da mulher que foi esposa e mãe da família. Depois que ela se vai, eles se afastam muito e entram em um estado de ressentimentos. O meu personagem (Daniel Filho), por exemplo, vai morar na Austrália, do outro lado do mundo – não tem como ser mais distante do pai. O final é arrebatador porque eles reinventam a própria história. E todos se identificam. É completamente redentor, emocionante e bonito. Eu fiquei arrebatado quando li o texto.

FOTO: Divulgação/ Roberto Setton
Que relação vocês têm com vinho? Apreciam a bebida e já visitaram vinícolas?
CB: Aprecio vinho, mas com moderação. Não chego a ser especialista, nem aficionado como os personagens. A cultura dos vinhos é como uma religião, fico impressionado com os apreciadores e a forma como eles provam; é um universo fascinante. Já visitei vinícolas da Região Sul do Brasil, onde conheci, por exemplo, o processo de fabricação. Aprendi com os portugueses da região do Douro a fazer um drink, no qual estou “viciado”, com água e vinho do Porto branco, que eu não conhecia. Conheço colecionadores de vinhos, com quem também conversamos para entender melhor sobre esse universo. Tem pessoas que andam com seus diários de anotações sobre vinhos e esse é também o grande barato da peça, sobre os segredos guardados neles. Inclusive, um dia, após o espetáculo, um espectador esperou para nos mostrar que estava com o caderninho dele sobre vinhos no bolso.
HC: Nunca gostei muito de vinhos, mas me casei com uma mulher que adorava e, como sou acolhedor, passei a adorar (risos). Já visitei várias vinícolas e, inclusive, morei por um ano (2009-2010) em Pommiers (Rhône), na França, uma cidade bem pequena da região do vinho Beaujolais. Então, acompanhei a colheita e conheci algumas propriedades. O vinho tem uma coisa interessante porque faz parte da história da humanidade, é uma cultura milenar com vários tipos de uvas e jeitos de fazer. No entanto, depois que me separei, deixei de gostar (risos).
A boa parceria profissional de vocês ficou muito evidente na série Beleza Fatal (HBO). Vocês também têm uma boa relação pessoal?
CB: A gente teve uma sintonia muito fácil e um prazer muito grande ao interpretar pai e filho (os médicos Átila e Benjamin Argento) naquela relação conturbada da série. Estávamos vivendo isso durante meses, com cenas intensas de brigas, quando me procuraram para apresentar a possibilidade do papel de filho nessa peça. Também me perguntaram se eu tinha ideia de algum ator para convidar para ser o pai da história. Falei: “tem que ser o Herson”. E ele topou na hora, adorou o texto. O Herson é uma das pessoas mais doces que conheço, mais gentis, um lorde, um príncipe. A gente criou uma relação muito especial e ele até brinca que sou o novo filho dele. Quando nos encontramos fora do trabalho, passamos a vida a limpo, conversamos muito sobre relações e ele sabe sobre as minhas histórias. Criamos um companheirismo muito forte. No teatro, todo dia a gente chega e passa o texto inteiro, o que é muito raro.
HC: Conheci o Caio, rapidamente, nos corredores da Globo e já havia gostado do jeito e do papo dele. Depois, nos conhecemos melhor como pai e filho que se dão muito mal em Beleza Fatal. Conheci, então, o Caio como ator. Ele é ótimo e tem essa característica de amar o trabalho que eu também tenho. Apesar das brigas em cena, que eram feitas de verdade, nos demos bem. E acabei descobrindo que ele não era apenas ator, mas, também, codiretor. Tudo que ele faz é bom – e gostei. Colegas falam que a gente tem parceria em cena e o público também percebe isso. O fato de ensaiarmos antes de cada apresentação sempre mostra um respeito enorme pelo público, e é algo que só tive igual com a Fernanda Montenegro.

FOTO: Divulgação/ Nana Moraes
Como foi o início da carreira teatral de vocês?
CB: Comecei na profissão bem novo e estou há mais de 30 anos nos palcos. O teatro sempre foi a escola principal, meu laboratório, um lugar para me aperfeiçoar e aprender com grandes mestres, como Bia Lessa, Antônio Abujamra e Domingos Oliveira. Fazia uma década que não dirigia e fiquei muito feliz com as sessões sempre lotadas da peça Os Irmãos Karamazov. Depois da pandemia e do excesso de vida digital, das telas, de repente, a presença física do ator e o processo coletivo presente no teatro ganharam um novo sentido, um novo significado. As peças têm ficado lotadas e sinto que as pessoas estão celebrando esse momento. É uma fase muito feliz para o teatro.
HC: Comecei aos 15 anos porque meu irmão mais velho chegou e falou: “Olha, apareceu uma peça para fazer no colégio. Vamos lá comigo”. Como eu me dava muito bem com ele, aceitei, mas meio sem vontade. Cheguei e vi o universo teatral do colégio estadual, no Paraná, as pessoas ensaiando, representando papéis e contando uma história muito louca de uma mulher que dizia conversar com Deus. Acabei fazendo um personagem que tinha 36 falas dentro de um texto de duas horas. Antigamente, em 1967, quando comecei, fazíamos outras coisas no ensaio da peça, como voz, expressão corporal, estudo de texto e vi aquilo tudo. Um dia, quando estava me concentrando para o personagem, deitei no palco, tive um insight e percebi que era o que queria fazer na vida. Até cheguei a fazer Faculdade de Economia, na Universidade de São Paulo (USP), mas, ali mesmo, comecei a procurar o pessoal do teatro, que sempre foi minha paixão. Fiquei muito feliz porque tem pessoas que ficam anos sem saber o que fazer e foi um privilégio descobrir tão cedo.
Como é, para o ator, o fato de ficar mais velho? Depois de tanto tempo de carreira, ainda surgem bons papéis para vocês?
CB: Amadurecer tem sido muito bom e me faz muito bem. Como sempre tive rosto de menino, fiz personagens mais jovens, mas, finalmente, após os 40 anos, começaram a surgir papéis de homens mais maduros e complexos. Envelhecer, no entanto, é ainda muito injusto para mulheres no mercado de trabalho por conta do etarismo. Existe essa diferença na carreira, mas, felizmente, esse problema está sendo corrigido. Ver a Fernanda Torres sendo premiada internacionalmente mostra que o lugar da mulher é onde ela quiser. Também está havendo uma transformação muito grande no sentido da conquista do espaço da diversidade, que demorou. Ao mesmo tempo, ainda há muita luta em relação à regulamentação do streaming. É uma coisa chocante o fato de não termos direito à nossa imagem. Agora, queremos atualizar os direitos conexos e de imagem dos atores do audiovisual no meio dessa revolução na forma de distribuir cultura no Brasil.
HC: Eu tenho uma paixão pela interpretação. Nem me acho maravilhoso, genial, como dizem, mas me considero, assim, regular. E, paralelamente, tenho outra paixão, que são meus filhos. Sempre precisei lutar pela sobrevivência e, como ator, é difícil depender das emissoras, dos filmes e das escolhas do diretor. Não é uma profissão constante e segura enquanto a gente tenta cobrir os custos da vida. Aceitei vários trabalhos porque precisava suprir minha família. Nem sempre fiz coisas que adorava. Muitas vezes, fiz coisas que não tinha o prazer de fazer, mas fiz por necessidade. Isso também veio a somar na carreira e já tenho 124 trabalhos realizados, entre peças, filmes e novelas. Até começaram a me chamar de veterano, passei de fase e achei interessante (risos). A questão da idade junta tudo isso, a gente sente que fica mais gostoso e prazeroso trabalhar. Antigamente, ficava cheio de problemas na cabeça, mas muita coisa melhorou com a maturidade.

FOTO: Divulgação/ Nana Moraes
Para o futuro, quais são os projetos de vocês?
CB: Tenho muitos caminhos para trilhar, inclusive, com Os Irmãos Karamazov (Dostoiévski) no teatro. Além disso, tem a segunda temporada da série que fiz em Portugal, onde sempre sonhei trabalhar, chamada Rabo de Peixe (Mar Branco, no Brasil), para estrear na Netflix. A história se passa nos Açores com pescadores. Também quero celebrar esse momento de lutas pelos direitos dos atores com esse governo que apoia a cultura, com essa conquista do Oscar, que mostra nossa identidade, nossa imagem para o mundo. A cultura é mais de 3% do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro e emprega, por exemplo, mais que a indústria automobilística. Sofremos tantos ataques que é muito importante mostrar os resultados do nosso trabalho para a economia e para a imagem do país no mundo.
HC: Assim que terminar Memórias do Vinho, vou estrear um novo trabalho com Natália do Vale e Miguel Falabella, com o título provisório Tem Que Dar Certo, previsto para estrear no Rio de Janeiro em setembro. Natália e eu já fizemos casal em duas novelas e, nessa peça, vamos fazer um casal separado. Fui sondado, ainda, para atuar em filmes, mas, hoje em dia, isso está muito maluco porque não sei ainda para quê, nem pra quem (risos). Também quero continuar na luta pacífica para que os direitos autorais sejam respeitados de acordo com a Constituição Federal. As plataformas de streaming e até as TVs abertas não estão pagando o que sempre pagaram por reprises. A classe artística está perturbada com isso, mas está contestando como que em silêncio porque fazer barulho pode prejudicar futuros trabalhos. Direito autoral é coisa séria.
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POR Paty Moraes Nobre
FOTO DESTAQUE: Divulgação/ Nana Moraes
FOTOS: Divulgação Roberto Setton e Divulgação/ Nana Moraes